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SOBRE A PRESENÇA/AUSÊNCIA DE DOLO NO CRIME DE GENOCÍDIO: uma falsa polêmica ou um verdadeiro acordão?

Nesta semana assistiu-se ao debate em torno da presença do termo “genocídio” no Relatório Final CPI mas a decisão dos Senadores foi a de recuar e isentar o Presidente da República desta responsabilidade. O que esse recuo nos diz sobre o Brasil, a CPI e o direito criminal?

Nesta semana assistiu-se ao debate em torno da presença do termo “genocídio” no Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia (Instituída pelos Requerimentos nos 1.371 e 1.372, de 2021), presidida pelo Senador  Rodrigo Pacheco, com a finalidade de apurar as ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento da Pandemia da Covid-19 no Brasil. 

A Minuta do texto, que contava com seções referentes aos impactos da pandemia às populações negras, quilombolas e, sobretudo, indígenas, destaca falas públicas e diversas ações administrativas em que o atual Presidente da República se coloca explicitamente contra as reivindicações e direitos dessa populações e resgata uma série de estudos que evidenciam que o “impacto da covid- 19 sobre os povos originários foi grave e desproporcional” , uma vez que a “assistência prestada foi insuficiente e descontínua” (Brasil, 2021: 590).   

O documento reconhece corretamente que apesar da “concorrência da campanha extraoficial de desinformação sobre o imunizante, iniciada meses antes, que teve nada menos que o Presidente da República como instigador e é mantida até hoje”  (idem) ouve um momento, tragicamente tardio, em que o negacionismo cedeu à pressão social pela vacinação em massa da população:   

Mesmo quando o governo priorizou a vacinação, ao menos dos indígenas aldeados, somente o fez tangido por forte pressão da sociedade e por ordens expressas do Supremo Tribunal Federal, às quais o Executivo resistiu, ensejando a adoção de medidas cautelares no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos e reações do STF, conforme registrado no documento no 824, submetido à CPI pelo Cepedisa (Brasil, 2021: 591). 

O Relatório mobiliza, ainda, uma série de artigos científicos que atestam os efeitos da pandemia sobre a vida das mulheres negras, em particular, e a população negra e quilombola, em geral e denuncia uma “naturalização das desigualdades que, na pandemia, colocam alguns grupos em situação de maior vulnerabilidade do que outros” (Idem, p. 604). 

A suposta polêmica em torno do termos “genocídio”

O que causou polêmica na redação final do relatório, ao longo da semana, foi o enquadramento das respostas governamentais brasileiras à Covid-19 como prática de genocídio. Depois de um intenso debate político nos bastidores, optou-se por incluir, no item 7.2. do Relatório um capítulo intitulado “Definição legal de genocídio e de crimes contra a humanidade”  onde diferencia o “genocídio” dos “crimes contra a humanidade” para, em seguida, justificar um surpreendente e decepcionante recuo na denúncia implícita à todo o argumento do documento.  

A Comissão, decide assim, isentar o Presidente da República do Crime de Genocídio contra os povos indígenas e enquadrar suas ações como Crime Contra a Humanidade. Embora se possa reconhecer que em um relatório de CPI o consenso mínimo possível sobre a interpretação dos fatos, por vezes, tem mais peso do que os fatos, em si, é fundamental problematizar alguns aspectos de seu processo e resultado final.  

Em primeiro lugar, chama a atenção a escolha dos relatores por tomar o holocausto nazista como referência de genocídio. A escolha não é sem fundamento já que foi este violento e incomensurável acontecimento que  suscitou o debate e a legislação internacional contra os crimes de genocídio. A menção ao jurista polonês Raphael Lemkin, que cunhou o termo genocídio, bem como o art. 6o, a, b e c, do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, promulgado no direito brasileiro por meio do Decreto no 4.388, de 25 de setembro de 2002, que define o genocídio, é fundamental, pois baliza o direito brasileiro sobre o tema (desde a Lei no 2.889, de 1o de outubro de 1956). 

É gritante, no entanto, o silêncio no referido capítulo do Relatório sobre a importante literatura sociológica sobre o genocídio negro e indígena. Embora se possa argumentar, inocentemente, que não é essa a literatura que fundamenta o Direito brasileiro sobre o tema. A pergunta que pode ser feita é: por que o próprio direito brasileiro não se debruçou, decisivamente,  sobre os casos históricos de mortes sistemáticas provocadas em seu território?  Não se pode esquecer que o genocídio perpetrado contra o povo judeu não era considerado como tal, até que o já mencionado jurista polonês formulasse e apresentasse o conceito à arena jurídica, em um contexto internacional de grande comoção em torno da publicização dos crimes nazistas, mas, sobretudo, com a derrota política desse bloco político-ideológico no plano militar.  

Ainda assim, as definições do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, promulgado no direito brasileiro por meio do Decreto no 4.388, de 25 de setembro de 2002  (mobilizado pelo Relatório da CPI, como justificativa para o seu surpreendente recuo) define como genocídio, em seu artigo 6o

qualquer um dos atos [..] praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo;b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; 

O direito não é neutro, uma vez que os pactos sociais em torno do que é considerado lei ou crime são sempre datados e permeados por interesses dos mais diversos. Isso não minimiza a gravidade dos fatos julgados, mas evidencia as forças e interesses políticos em jogo. A omissão no debate sobre o genocídio brasileiro de autores como Abdias do Nascimento, Lélia Gonzales, Ailton Krenak, Cacique Raoní, Dinamã Tuxá, Weber Góes, Marisa Fefferman, Ana Flauzina e Débora Maria da Silva e para citar alguns, não viola o direito brasileiro ou internacional, é verdade, mas evidencia as raízes, tronco, galhos e folhagem coloniais da política e do direito brasileiro, em sua possibilidade de reconhecer o genocídio como parte fundante de seu passado e presente. 

Mas por que se recuou?

Ao declinar da classificação dos crimes cometidos na pandemia como genocídio, os integrantes da CPI – ovacionados pelos principais monopólios de comunicação –  baseiam-se em três premissas: 1. A ideia de que não houve a intensionalidade das mortes, previstas na legislação nacional e internacional sobre o genocídio; 2. A ideia de que as mortes não prejudicaram um único grupo e, principalmente, 3. O temor, não infundado, de que os desfechos políticos e jurídicos posteriores à aprovação poderiam ser dificultados por uma redação menos branda.  Assim, assiste-se, a dobra conveniente na interpretação jurídica à função da correlação de forças e da conjuntura política.  Mas há alguns problemas graves nessa concessão. 

Em primeiro lugar a tese de que não houve dolo na produção política e social das quase 605 mil mortes oficiais por Covid-19 no Brasil só é sustentável se não nos ativermos aos fatos de que elas são resultados de ações deliberadas e cuidadosamente projetadas a partir de um determinado projeto político que optou,  tanto pela propagação intencional do vírus quanto pela sabotagem às medidas de proteção contra a pandemia, como explicita o Boletim Direitos na Pandemia, desenvolvido pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, em conjunto com a Conectas Direitos Humanos.  Aliás, o Governo Federal adota estas medidas de facilitação da propagação do vírus e dificuldade de conter a pandemia e os seus efeitos sociais e epidemiológicos – isso para não falar na propagação sistemática de notícias falsas –  inclusive nos períodos que já se sabia cientificamente dos danos provocados por tais esforços. 

Ainda assim, se poderia contra-argumentar,  alegando que o dolo explicito na opção pela morte como política econômica foi generalizado, e, portanto,  não direcionado à um grupo ético-racial específico. Essa premissa também se mostra falsa se considerarmos, tanto a tendência histórica e atual de morte e violência estatal perpetradas contra a população negra e indígena quanto o fato de que, desde os primeiros meses de pandemia, já era sabido por dados oficiais que negros e indígenas tinham mais chance de morrer do que brancos  no Brasil. Desigualdades que se mantém até o presente momento, como se pode ver no estudo Instituto Polis, citado pela CPI.

O que se observou nos meses seguintes – até o momento atual – foi a deliberada sabotagem à coleta de informação qualificada que permitisse acompanhar e combater essas desigualdades em cada região ou município, posto que o Brasil coleta o quesito cor nos sistemas de informação de saúde há anos[1]. Curiosamente, os grupos e regiões com maior número de mortes por covid-19 foram os que tiveram o menor e mais tardio acesso à vacinação.  

Esses dados desmontam o segundo argumento, uma vez que se constatou que os efeitos da pandemia não foram igualmente distribuídos entre os diferentes grupos sociais, atacando prioritariamente, exatamente aqueles que figuravam nas declarações da equipe econômica do Governo Federal – essa que é sempre poupada de críticas pelos grandes monopólios da comunicação – em defesa da reforma da previdência como problema ao teto de gastos com os seus direitos historicamente garantidos[2]. As mortes de aposentados pobres, trabalhadores precarizados, desempregados e miseráveis de toda ordem – a maioria, negros, indígenas ou seus descendentes urbanos –  vêm, curiosamente, ao encontro das pretensões governamentais de diminuição dos gastos públicos com a previdência social.  

O genocídio: um diagnóstico difícil de aceitar

O que os fartos estudos sobre desigualdades raciais e saúde no Brasil têm evidenciado, antes mesmo da pandemia, um padrão racial de morte. Todos os que estão vivos morrerão (então a morte como fenômeno intrínseco à toda forma de vida, é universalmente, indiscriminada) mas as formas pelo qual isso vai ocorrer e, sobretudo, a proporção com que determinadas causas de morte se concentram sobre certos grupos em detrimento de outros não é novidade à epidemiologia desde o seu nascimento. O que causa espanto, até mesmo na epidemiologia, é o silêncio em relação ao racismo como determinação social de saúde, adoecimento e morte.

De todo modo, o debate sobre o dolo é sempre ambíguo. Segundo a definição jurídica corrente, o dolo pressupõe sempre uma vontade livre e consciente de praticar a infração. Mas se esquece que a mesma definição também prevê como dolo a consciência de assumir os riscos de produzir o resultado em questão. Isso significa que se uma pessoa beber antes de dirigir ou aplicar em seu paciente um tratamento sabidamente ineficiente contra um determinado vírus mortal, essa pessoa está assumindo os riscos por sua decisão e deve ser responsabilizada como tal, ainda que caiba litígio em determinados casos específicos.  

Ocorre que quando se fala em genocídio na constituição do Brasil, um argumento frequentemente utilizado, é a ausência de um dolo ou intensão de matar. Mas se a ocupação predatória das terras de Abya Yala pelos europeus, bem como a escravização e extermínio sistemático e quase total de seus habitantes originários foram condições para o avanço do colonialismo, do extrativismo e do chamado progresso; se a violência estatal no Brasil, tem um perfil racial definido para o encarceramento e o extermínio – ainda que o objetivo não seja a eliminação total do grupo, já que ele tem uma função econômica precisa no contexto de superexploração do trabalho – e o seu resultado é um padrão racial de mortes, por que a resistência em se dar nome aos bois?

Se era sabido desde o início da pandemia que:  por conta do racismo, negros e indígenas morrem mais do que brancos por Covid-19 no Brasil; que a resposta dada à pandemia pelo Governo Federal não foi resultado de incompetência, mas de um projeto deliberado e publicamente assumido; que o perfil das mortes por Covid-19 vem, exatamente, ao encontro, daqueles grupos ético-raciais e de classe eleitos por esse governo por aqueles que atrapalham a economia; e, sobretudo, se diante da farta evidência científica nacional e internacional sobre as desigualdades étnico-raciais das mortes e acesso à vacina, optou-se não fazer nada à respeito e só se fez sob pressão de órgãos externos; a pergunta que fica é: se isso não é dolo, o que o seria? 

Se é de conhecimentos dos agentes que uma determinada ação causará um determina impacto, e mesmo assim, se opta por ela – com vistas à outros interesses, como o econômico – por exemplo, ela deixa de ser dolosa? Então uma pessoa que tinha o objetivo explícito de assaltar à mão armada à outra pessoa, mas tem – voluntariamente – na morte da vítima o sucesso de seu intento, não poderia ser responsabilizado pela morte dolosa porque o seu objetivo inicial era salvar ou ampliar as suas próprias economias? Imaginemos a sentença, neste caso: “ele matou, é verdade, mas a sua condenação será apenas por aquilo que era o seu objetivo econômico inicial, o roubo”. Soaria minimamente estranho, até para os ouvidos mais abolicionistas, especialmente por sabermos que esse tipo de “salvo conduto” dificilmente será estendido às classes e grupos subalternizados da nossa sociedade.

Uma tática necessária ou a perda de uma oportunidade histórica?

Por fim, a tática acanhada de recuar na denúncia de genocídio, optando por uma classificação mais branda e menos chocante causa perplexidade exatamente pelo efeito contrário que pode sugerir.  Se um crime é um crime[3]qual é o sentido em  amenizar a sua descrição com vistas à sua aceitabilidade nos órgãos judiciais, dado o poder político, econômico e social do suposto criminoso? Se o papel de um órgão investigativo, como é o caso da CPI, é investigar e oferecer subsídios para futuros julgamentos que serão protagonizados por outros atores, a amenização da denúncia com vistas à recepção dela, e não aos fatos em si, não poderia colocar em xeque a credibilidade das evidências apresentadas, dando a entender que o que importa é quem é julgado e quem julgará e não o crime em si? 

A história julgará e nos auxiliará responder a essas perguntas com mais distância e nos dirá se esse é o caminho certo ou um grande acordão que nos retira a oportunidade histórica de dar nome aos Bois.  Por hora, não se pode deixar de dizer que aparentemente – embora a CPI tenha cumprido uma função importante no debate político atual – alguma coisa errada não está certa neste desfecho. Enquanto isso, a desigualdade no perfil das mortes e, sobretudo, no acesso à vacina  – dado insistentemente ignorado pro importantes atores deste processo – continua sendo uma realidade do presente que segue fora de foco, inclusive das políticas sanitárias, sob o conveniente argumento de que a Covid-19 mata indiscriminadamente. 

Deivison Faustino (@deivisonnkosi) é mestre em ciências da saúde, doutor em sociologia e Professor do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais da  UNIFESP, integrante do grupo de trabalho do Instituto Polis para Covid-19, Raça e Território.

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[1] Isso para não falar na infame campanha “o Brasil não pode parar” que convocava trabalhadores precarizados – utilizando-se apenas de atores negros – para arriscarem a sua vida e desrespeitarem as medidas epidemiológicas de proteção em defesa da suposta economia – como se fosse possível produzir riquezas  estando mortos – no mesmo mês que ficou público a desigualdade racial na chance de morrer por Covid-19. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=hQQZE7LQIGk

[2] Como expressa a fala de Solange Vieira, então Superintendente da Superintendência de Seguros rivados _SUSEP, autarquia ligada ao Ministério da Fazenda:  “É bom que as mortes se concentrem entre os idosos. Isso melhorará nosso desempenho econômico, pois reduzirá nosso déficit previdenciário”. Em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,morte-de-idosos-por-covid-19-melhora-contas-da-previdencia-teria-dito-chefe-da-susep,70003317874

[3] ainda que se lembre que a definição de leis e de crimes são sempre fruto de pactos sociais em um determinado tempo e espaço, mediada por determinadas relações de poder

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