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O Coronavírus e a quarentena que não chega na Periferia: O que fazer?

Este texto foi publicado, originalmente, no dia 17 de março de 2020, quando o Brasil já contabilizava 291 casos confirmados e uma morte por complicações provocadas por COVID-19. À esta altura a maioria dos casos (57%) ainda eram “importados” (aqueles contraídos fora do país) e 32% oriundos de transmissão local (adquiridos no contato com o primeiro grupo) e apenas 12%, resultado da “transmissão comunitária” (quando não se sabe identificar a cadeia de infecção). Isto significa que a epidemia, no Brasil, com algumas exceções, ainda estava concentrada nas classes com poder aquisitivo para circular internacionalmente e em seus congêneres do mesmo grupo social.

Neste momento, diante das informações disponíveis sobre a dinâmica de infecção e contensão do vírus na China, Irã, Itália e Espanha, mas também da subestimação por parte da Presidência da República do Brasil, em relação ao potencial destruidor da pandemia no Brasil, alguns pesquisadores e ativistas da saúde, ao qual me incluo,  empenharam-se em divulgar ao máximo  as consequências e as previsões de adoecimento e morte. A divulgação dos dados visava alertar as autoridades políticas e sanitárias a respeito dos riscos, mas sobretudo, instar a população me geral a aderir ao confinamento social como possibilidade de amenizar a curva de infecção do vírus.

A questão que motivou a escrita do presente texto – e consequentemente a redação do seu título –, na ocasião, foi a minha constatação, em redes sociais das mais variadas, de uma preocupação crescente de lideranças comunitárias, ativistas e militantes que vivem nas favelas ou que atuam com população de rua ou institucionalizadas pelo encarceramento sobre como cumprir o isolamento necessário – a chamada quarentena –  diante das históricas desigualdades de habitação, saneamento, acesso à saúde e ao trabalho decente à que a população negra e periférica está assujeitada nos grandes centros urbanos onde a epidemia vem crescendo vertiginosamente.

Reviso este texto no dia 31 de março, quando o Brasil, que ainda não conseguiu disponibilizar testes suficientes para saber o real alcance da epidemia, conta com 4.661 casos confirmados e 154 mortes (803 casos confirmados e 39.016 mortes no mundo todo), e após o Governo Federal ainda resiste – sob a descrença nas evidências científicas e confronto às próprias recomendações e previsões do Ministério da Saúde – a criar ações coordenadas para garantir as medidas de prevenção da infecção. Não obstante, lançou uma peça publicitária chamada “O Brasil não pode parar” (felizmente suspensa pela Justiça Federal do Rio de Janeiro) onde incentivou os trabalhadores precarizados do setor de serviço a romperem a quarentena em nome da economia do país. Chamou a atenção, no entanto, que 99% das personagens apresentadas na peça publicitária eram negros, o que indica bem qual é o grupo a ser sacrificado.

Devido à urgência do texto, na ocasião, pensado para circular entre ativistas e lideranças comunitárias, mas também, devido à mobilização pública que se seguiu, a presente redação foi atualizada com indicação de novos dados e Redes que naquele momento não existiam ou não eram de meu conhecimento.

Salve família,

Tenho lido muitos relatos (coerentes) lembrando que em uma sociedade desigual como a nossa a quarentena é privilégio para poucos e que nas quebradas (das periferias ou dos centros) ou mesmo para o povo que vive nas ruas o bagulho é diferente. Nestes lugares os trabalhadores (a maioria preto/as) são jogados à situações degradantes de moradia, saneamento, trabalho e transporte precários e, por isso, não podem se dar ao luxo de seguir as recomendações da Organização Mundial de Saúde.

Escrevo este texto para concordar com essa preocupação, mas também para fazer algumas considerações que podem ser importantes daqui para frente:

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Em primeiro lugar, é fundamental denunciar essa Necropolítica de classe e raça que impede que tenhamos acesso à iguais condições de cuidado contra esta e outras epidemias (as outras mortes de sempre não tiraram férias na periferia enquanto o Novo Corona entra em cena). No entanto, seguir apenas repetindo que “para a Perifa a quarentena é um luxo inalcançável” é contraproducente e não resolverá o problema que está por vir, aliás, acaba revelando um tipo de negacionismo irracional. Este é o momento de pensar, partindo dessa correta constatação, o que fazer.

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Taxa de mortalidade COVID-19 por idade

Em segundo lugar,  o grande desafio, neste momento, especialmente diante de um presidente que desacredita os dados científicos e as recomendações do próprio Ministério da Saúde incentivando os pobres a seguirem trabalhando,  é convencer o nosso povo (especialmente os/as nossos/as mais velhos/as) de que a situação é séria e requer cuidados difíceis, mas necessários: cancelar aquele bom papo no bar, aquele churrasco firmeza no final de semana, o beijo dengoso no rosto ou na boca, e, por que não, adotar a saudação wakandiana, quando encontrar aquele/a truta firmeza? Isso não significa ignorar que o nosso povo vai ter que continuar pegando o trem e busão lotados, vai seguir se expondo enquanto trabalha de forma precária (porque a maioria é “autônomo” ou operário mal pago). A questão que precisaremos pensar, a partir de agora é: CASO NÃO SEJA POSSÍVEL SE ISOLAR, que redução de danos podemos inventar e utilizar para minimizar a treta que está por vir? Quais meios e estratégias devemos desenvolver para nós defender o máximo possível?

– se não posso me isolar em casa, posso, pelo menos, evitar cumprimentar dando as mãos ou beijo no rosto quando precisar estar fora de casa?

– se tenho que pegar o busão ou o trem, posso usar máscara? Segundo a OMS, a máscara só é recomendável para quem estiver doente e para os profissionais de saúde. Mas e no Busão lotado onde a distância mínima de um desconhecido se mede em  poucos centímetros? Mas se não tenho máscaras, há outros recursos como lenço (gangsta ou trap stile), máscara k-pop ou qualquer, bandana ou coisa parecida que posso usar ou improvisar?

– se precisei usar transporte público ou pegar em dinheiro ou mercadoria de outra pessoa: dá para usar álcool em gel após cada contato com o corrimão e banco do busão ou as mãos das pessoas? se não tiver álcool em gel, dá para improvisar uma garrafinha de água com detergente?

Tem se discutido, atualmente, o grau de eficiência e efetividade destas medidas que estou indicando, mas por hora, a pergunta mais sensata deve mobilizar profissionais de saúde e ativistas é: “quais os meios disponíveis em cada realidade que podemos lançar mão para diminuir o máximo possível a vulnerabilidade ao contágio?”. Esse debate é tão importante quanto a constatação de que a quarentena não chega na favela.

Agora, se o bagulho virar The Walking Dead, truta, com comércios totalmente fechados, crise de abastecimento, caos social e saques em desespero ou mesmo se os governos continuarem ignorando a periferia no planejamento do Covid19,  teremos que nos antecipar e ir organizando grupos comunitários (os coletivos de quebrada, partidos, organizações comunitárias serão fundamentais) e redes/comitês/articulações amplas de defesa da saúde para suprir as ausências do Estado nas quebradas: fazendo compras para os mais velhos ou com dificuldade de locomoção; arregimentando doações de itens de higiene para moradores de rua e os mais necessitados; e eventualmente, pensando estratégias de socorro (locomoção para hospitais, e até velórios, se for o caso) e até de segurança das quebradas, porque o medo e a necessidade extrema podem libertar monstros horríveis no que há de melhor em nós… tudo sem esquecer a própria segurança, óbvio!

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Para além de tudo isso, os momentos de crise oferecem ótimas oportunidades para colocar em reflexão, enquanto  agimos, que sociedade é essa que nos coloca nessa situação de vulnerabilidade e que sociedade queremos daqui pra frente, mas, sobretudo,  qual é o papel dos bens públicos como o SUS, diante do interesse comum. O capitalismo está entrando em uma das maiores crises já vistas nos últimos anos e A SOLUÇÃO DELES é aumentar a precarização da NOSSA vida através de reformas (na verdade, deformas) que destroem a educação, renda, moradia e, sobretudo, de saúde dos NOSSOS. Como um urubu que sobrevoa a carniça que ainda nem veio à óbito, Paulo Guedes, antes de se infectar, estava propondo aproveitar o momento pra “acelerar as reformas”. “É a nossa destruição que eles querem, física e mentalmente o mais que puderem” (Racionais, Mcs). Por outro lado, o Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, ao constatar que o capitalismo está cagando para a nossa segurança, mandou papo reto ao  ameaçar fazer greve, reivindicando uma licença remunerada para os trabalhadores em quarentena. Na França e Itália explodiram uma série de greves espontâneas – mesmo sem a participação das burocracias sindicais – reivindicando licenças remuneradas (o grande Capital tem gordura de sobra para isso, mas só o fará se estiver pressionado pelos trabalhadores). O momento exige que transformemos o medo em auto-organização e que utilizemos os meios tradicionais de afastar ou confundir as pessoas (Zap-zap, insta, face, telegran) e mesmo aquela JBL possante a serviço do Pancadão para dar a letra certa e organizar redes de ajuda mútua e partilha de informações sérias que possam nos ajudar a atravessar o que está por vir.

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Por fim, é mais que o momento de politizar a distribuição desigual de recursos de saúde e saneamento e nos apropriarmos desta luta (independente de qual igreja teórica a nossa militância se baseie). O Sistema Único de Saúde (e também as pesquisas de saúde que podem nos salvar neste momento) vêm sendo atacados por este governo messiânico e fundamentalista, mas mesmo antes destes ataques, o SUS já chegava com mais precariedade aos territórios negros, rurais, quilombolas, ribeirinhos e, à população de rua ou dos cortiços dos grandes centros urbanos (o Racismo institucional). Há o risco deste Racismo Institucional se repetir agora, no momento de crise onde não há teses, leitos ou respiradores suficientes… Nós conhecemos bem o amargo colapso do Sistema de Saúde muito antes de existir Coronavirus, em cada negligência, fila e mal atendimento  vivido em primeira pessoa. No entanto, é necessário lembrar que o SUS é uma conquista que só foi possível por conta da mobilização política do povo preto junto a outros grupos sociais e, sobretudo, reconhecer, que algumas direitos são alcançados com a luta organizada. Ao acompanhar um parente ou amigo necessitado, que precisar do Sistema de Saúde, teremos que nos colocar como militantes da saúde pública e universal (princípios do SUS) e neste momento, se informar sobre com funciona o Sistema e, principalmente, sobre os movimentos de defesa da saúde pode nos ajudar muito.

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Penso que este é o momento das Redes Ativistas de Saúde se apresentarem para a população como mediadores e aglutinadores do que chamamos de Controle Social das políticas de saúde, de forma a ajudar as pessoas comuns e militantes de outras áreas a não lutarem sozinhas. Seguiremos defenderemos o SUS com toda a nossa força, mas sabemos que a Necropolítica tem endereço, especialmente em momentos de crise. É o momento de exigir dos governos a criação de estratégias concretas de enfrentamento ao Covid nas periferias, quilombos, comunidades indígenas, presídios e população de rua.

Hora de colocar nossas teorias em prática e, mesmo sob isolamento biológico, romper o isolamento social e político a que fomos confinados e acabamos aceitando nos últimos anos. Hora de forjarmos o novo, assumindo a dianteira dos nossos próprios corres. O “nós por nós” nunca fez tanto sentido, mas ele deverá ser muito mais amplo do que imaginávamos ou definharemos confinados em nossas verdades inertes!

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Destaco, a seguir, algumas iniciativas firmezas que foram aparecendo ou sendo fortalecidas nos últimos dias e podem ser úteis (não conseguirei listar a todas, mas elas mandam a visão do que pode ser replicado):

2 respostas em “O Coronavírus e a quarentena que não chega na Periferia: O que fazer?”

Excelente texto, desnudas as questões das populações das periferias que desvelam, de fato, o que há de mais desumano no sustema capitalista.
Sou professora aposentada, 71 anos e nessas alturas pouco posso fazer, a não ser apoiar iniciativas como essas, divulgar e utilizar a nossa ferramenta de trabalho: fala.
Obrigada pelo esperançar!
Katsue HAMADA e zenun

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