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Memórias de um MC: relatos de uma caminhada a partir do hip hop militante

Por Deivison Nkosi

O artigo que se segue, apesar de ter sido publicado em 2017, foi escrito em 2012, como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na disciplina Sociologia Urbana, do  Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (PPGS-UFSCar), oferecida pelo Prof. Gabriel Feltran. A ocasião da escrita foi marcada, em primeiro lugar, pela euforia econômica – com fortes impactos culturais –  gerada nas periferias das grandes cidades do Brasil, devido ao aquecimento econômico e à ampliação dos índices de consumo das classes C, D e E, ocorridos durante o Governo Lula (2003-2010).

Era um momento em que se discutia se ainda fazia sentido existir rap de protesto, uma vez que a realidade empírica sugeria ser possível a ascensão individual pelo consumo financeirizado. Por outro lado (ou, em consequência,), era o momento em que eu, um MC militante e panafricanista de esquerda, aposentava  o microfone e iniciava o doutorado em uma cidade do interior paulista. Apesar de ser um texto datado, torna-se extremamente precioso e revelador de como uma parcela da juventude negra de uma certa época respondia política, subjetiva e esteticamente aos dilemas de raça, classe e gênero.

*O texto abaixo, com excessão das fotos, foi integralmente publicado em FAUSTINO, D. M. Memórias de um MC: relatos de uma caminhada a partir do hip-hop militante. In: BERTELLI, Giordano B.; FELTRAN, Gabriel. (Orgs.). Vozes à margem: periferias, estética e política. São Carlos: EdUFSCar, 2017,  , p. 233-258.

Memórias de um MC: relatos de uma caminhada a partir do hip-hop militante

Os dilemas da memória  

Originalmente, esse texto, que por pouco não foi uma música, seria nomeado como Memórias póstumas de um MC. Evidentemente, contra a minha vontade, o grupo de  rap Amandla,  ao qual  dediquei tantos anos da minha vida, havia se dissolvido e eu  – agora, ainda com tantos  sonhos, porém, com muito mais responsabilidades, que não se assemelhavam em nada ao contexto de sua criação,  precisava encontrar uma maneira de elaborar o luto, mesmo que fosse escrevendo uma letra final. Todavia faltava-me o estímulo necessário.

E esse estímulo chegou em meados de 2012, depois de assistir às aulas de Sociologia Urbana do Prof. Gabriel Feltran, no PPGS-UFSCar. Nas aulas, o professor apresentou algumas letras de rap, ao lado de textos sociológicos renomados, como subsídio teórico privilegiado para a compreensão das contradições do Brasil contemporâneo.  Empolgado com a iniciativa e, ao mesmo tempo, provocado pelas reflexões proporcionadas pelas aulas, resolvi chegar junto ao debate falando um pouco da minha trajetória pregressa como MC e ativista orgânico do Movimento Hip-Hop durante 15 anos.

Escrever este texto foi uma tarefa deliciosa, que me despertou sentimentos diversos[[i]]. Enquanto digitava o manuscrito, fui me dando conta de que o tema “memórias póstumas” não seria capaz de expressar o meu desejo de seguir a caminhada por outros meios. A “morte”, representada pelo fim do grupo musical, não havia “matado” em mim a disposição para seguir em frente, a partir de novos ciclos. Assim, resolvi renomear o artigo como “Memória de um ex-MC”. Após escrever o manuscrito e submetê-lo à crítica de alguns amigos, recebi da MC Larissa Borges Amorim, do grupo Negras Ativas de Belo Horizonte, alguns preciosos comentários, que muito me emocionaram. Entre eles, uma advertência, que abalaria o meu sistema nervoso e o sanguíneo:

Como assim, ex-MC? Preto, você tem o poder da palavra. Lembra? Se MC é aquele(a) que representa a Cultura Hip-Hop, que com o Microfone na mão e através de suas posturas, falas e atitudes,  mostra-se conhecedor(a) e integrado(a) ao Hip-Hop. Aquele(a) que através da palavra é, registra, revela, visibiliza, media, articula, organiza, mobiliza, promove… é Griot contemporâneo(a). Tem que ver com habilidades que a gente desenvolve e com ações que a gente realiza, mas que se incorporam em nós. Você sente que é possível deixar de ser MC? Talvez você seja um MC descansando suas rimas no papel. No máximo um MC aposentado… e vai saber por quanto tempo?

Dizer o que, depois disso? Tratei logo de suprimir o “ex” do título e, desde então, o texto segue com o seguinte nome: “Memórias de um MC: relatos de uma caminhada a partir do hip-hop militante”.

Acho relevante confessar que relutei em submeter este texto à publicação. Primeiro, como será possível constatar, relato um processo rico e, ao mesmo tempo, contraditório, em que não fui apenas um observador distante, mas, sobretudo, parte constituinte e, como tal, sujeito a parcialidades que se farão notar durante a leitura.  O hip-hop, bem como outras expressões políticas e culturais modernas, é demasiadamente complexo para ser reduzido à perspectiva que aqui apresento e as posições políticas e ideológicas que eu defendi nunca foram hegemônicas no rolê como um todo, mas, ainda assim, na humilde, mas, ao mesmo tempo, ciente de que este relato pode ser útil, resolvi registrar a caminhada e disponibilizá-la a  quem interessar.

O segundo motivo pelo qual relutei em publicar o texto relaciona-se com os dilemas pertinentes ao lugar comum do Negro na Academia. Via de regra, a participação do Negro no universo acadêmico pode ser resumida à sua aparição como mero  objeto de estudo, ou, na melhor das hipóteses, a “informante privilegiado” da reflexão de outrem. O Negro que se lança nesse espaço, ainda eurocêntrico, tem que driblar – estamos longe de falar em superar – as marcas da racialização.

Publicar um artigo que mistura as “expressões linguísticas” aprendidas ao longo da vida com os jargões – por que não falar em gírias? – acadêmicos da sociologia. para falar, em primeira pessoa, de experiências relacionadas à favela, ao crime e racismo, pode reforçar estigmas demasiadamente pesados para quem almeja ser intelectualmente reconhecido nesse espaço, para além desses rótulos.

De todo modo, como me lembra a Griot andreense Sônia Maria de Souza Raimundo, “quem tem medo de cagar não come”, então, pode pá que é nois que tá! Por via das dúvidas – ciente de não fazer parte dos que definem o que é ou não é o padrão e a norma – optei por escrever as gírias da minha quebrada em formato itálico, enquanto finjo naturalizar as gírias da academia.

Por último, e não menos relevante, é importante reconhecer que em empreitadas como essa que estou assumindo, a memória encontra dilemas que não podem ser ignorados: não há quem não fique empolgado ao contar a sua história e  o  entusiasmo  por apresentar a própria trajetória como uma saga heróica pode fazer com que a trama assuma um tom teleológico, que só existe na imaginação do narrador, apresentando a falsa ideia de que o desfecho da história já estava inscrita desde o início. Não estou certo de ter superado esse dilema – se é que é possível superá-lo – mas tentei ser honesto com as lembranças que tenho, mesmo correndo o risco de ser injusto com alguém.

Busquei, ao longo do texto, apresentar alguns trechos de músicas que marcaram minha caminhada, mas, desde já, aviso aos não iniciados na arte do flow – refiro-me ao rap enquanto gênero musical – que essa expressão artística não foi originalmente criada para ser lida, e sim escutada.  Isso significa, penso, que a dimensão estética da produção pode ser potencializada quando se mescla a leitura das letras com a audição simultânea das músicas e, por isso, fiz questão de oferecer, nas notas de rodapé, o link para todas as canções citadas.

O Sítio dos Vianas

Minha mãe (Alaíde), irmã (Shirlei) e eu, em frente de casa… provavelmente aos 5 anos

Em 1995, quando eu ainda tinha 13 anos de idade, transferi o meu horário de estudos para o período noturno, para poder trabalhar durante o dia. Como a transferência aconteceu no meio do ano, só o que me restou foi uma vaga na sexta série F, descrita pelos professores da escola como sendo “a pior turma da escola”.

Para a minha sorte, havia vários manos do Sítio, nessa turma, e antes que eu fosse vítima de alguma zueira, por ser muleke novo na área, o meu vizinho, pelo menos  uns 10 anos mais velho do que eu, avisou em voz alta a quem pudesse escutar: “Ninguém mexe com o muleke que ele é do Sítio!”.

Naquela época, ser do Sítio era um fator que demarcava o nosso lugar no mundo: as guerras entre grupos criminosos e as numerosas mortes resultantes desses enfrentamentos  eram as notícias mais comuns que circulavam na cidade sobre o bairro, o que fazia, por exemplo, os motoristas dos  caminhões de entrega de mercadorias recusarem-se a adentrar o bairro; a polícia, por sua vez, quando identificava que éramos moradores desse bairro, nos tratava como bandidos em potencial; e os moradores,  como estratégia para vencer os preconceitos enfrentados no mercado de trabalho, colocavam o endereço de bairros vizinhos em seus currículos.

Se, por um lado, essa (má) fama nos reservava todo o tipo de estereótipos, entre os moradores dos bairros vizinhos, e, principalmente, entre os proprietários do comércio local, essa mesma fama ajudou a construir certa respeitabilidade entre os outros mulekes da mesma faixa etária e fortalecia o sentimento de orgulho entre nós.

Com a mudança de horário na escola, um admirável mundo novo abriu-se à minha frente, e eu, que acabava de me desviar de uma igreja neo-pentecostal, descobria o mundo com todo o fervor e a inocência que a adolescência pode proporcionar.

Conheci a malandragem e os seus pressupostos; beijei na boca pela primeira vez; comecei a matar aula para ir ao samba e para ficar com as meninas das escolas dos bairros vizinhos, mas, sobretudo, comecei a juntar-me com os manos do rap, que ficavam no canto do pátio da escola cantando as músicas novas de grupos, como Racionais MC’s, Consciência Humana, e de outros que circulavam através de fitas cassetes trocadas entre nós.

Eu já conhecia rap antes, porque, na rua em que eu morava, a diversão dos manos, aos fins de semana, era colocar as caixas de som pra fora do barraco e ouvir um rap estalado no último volume, irritando os vizinhos mais conservadores – o meu saudoso avô que o diga!. Eu sempre acompanhei tudo, mas até aquele momento eu era muito “novo” e me contentava em “filmar o movimento ao meu redor” [[ii]]  sem participar diretamente. Mas, ao chegar na escola e vivenciar o submundo noturno, eu passei a escutar os raps com mais atenção e a minha diversão favorita se tornou colar junto com os parceiros para decorar as músicas novas dos grupos famosos e, em seguida, mandar um som no intervalo das aulas…

O Fião – O Mano maior divulgador dos Racionais Mcs, na escola (1996)

Enquanto cantávamos, colava uma pá de gente pra curtir o som, e quem sabia a letra cantava junto. O barato era tão loko que a música Fórmula Mágica da Paz já circulava entre nós quase dois anos antes do Grupo Racionais MC’s lançá-la oficialmente, em 1997, no CD Sobrevivendo no Inferno. Cantávamos e a repetíamos catarticamente, como um mantra que nos elevava à frente do espelho:

Essa pôrra é um campo minado / Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui, / Mas, aí, minha área é tudo o que eu tenho / a minha vida é aqui e eu não consigo sair, é muito fácil fugir, mas eu não vou… / não vou trair quem eu fui e quem eu sou / gosto de onde estou e de onde eu vim / o ensinamento da favela foi muito bom pra mim… [[iii]]

Foram momentos intensos, marcados por deliciosas descobertas e dolorosas frustrações. A violência causada pelas guerras entre os manos do corre, os gambé (polícia) e os justiceiros, levava muitos amigos queridos a óbito e, nesse momento, aquilo que proporcionava status se tornava pesadelo diante do risco de sermos confundidos com e por alguns desses sistemas. Sob esse clima de perda, o advento da morte, e nós que não éramos nem o crime e nem o creme, procurávamos voltar da escola em grupo, para nos proteger. No caminho, como era de lei, cantávamos:

Rajada, Rajada, Ra Ta, Ta, Tá. / Cuidado que esta bala pode te matar / […] /  E eu vou, vou citar alguns nomes pra vocês acreditarem; / Pé de Pato, Cabo Bruno, Conte Lopez passaram por lá; / “Cheios de razões e calibres em punho”; / Somente pra matar, somente pra matar;[[iv]]

Mas nem tudo era luto. Lembro-me da primeira vez em que visitei o Club Hause, uma casa noturna que só tocava rap, em uma época em que o rap nem mesmo era considerado música, por muitos produtores culturais; aliás, o repúdio ao rap era tão grande que a nossa reação foi nos voltar violentamente a seu favor. Quando cheguei na entrada do Club House pela primeira vez, eu tomei um susto: por onde quer que eu olhasse, só observava gente preta. Os manos com aqueles cabelos black power, as minas com aquelas tranças… pela primeira vez, eu não me sentia encerrado em mim mesmo.

Embora a casa noturna estivesse situada em um bairro de classe média, ela  era tão demarcadamente negra que, em geral, os jovens brancos, especialmente os de classe média, tinham medo de circular por aquela região, nos dias de eventos. Em contrapartida, os negros que ali frequentavam não tinham vergonha de seu cabelo, das gírias que falavam, e de toda a sua corporeidade, pelo contrário, era como se, pelo menos ali, quanto “mais negra” uma pessoa fosse, melhor  avaliada seria.

Isso não quer dizer que não houvesse brancos, nessa casa noturna, evidentenmente que estavam presentes, mas eram “aqueles brancos” que colavam com a gente e que, de alguma forma, também aparentavam trazer a favela no corpo. Os conflitos e estranhamentos davam-se mesmo com aqueles a quem julgávamos Playboys: assim como nós, não poderíamos escapar aos seus olhares de medo e desprezo, por sermos imediatamente identificados como favelados, eles, aos nossos olhos, não passavam de riquinhos mimados e frágeis, que mereciam o nosso repúdio e, por isso, o encontro nas ruas da cidade era sempre marcado por uma certa tensão.

Fachada do Club House Fonte: DjRic 1989

O Club House foi muito importante para a minha trajetória. Foi o lugar em que pude conhecer o grande King Nino Brown falando para os jovens sobre os elementos do hip-hop na fila da entrada para o baile; pude ouvir ao vivo os grupos musicais que eu mais gostava e dar uns beijos inesquecíveis. Ali, entre tranças e cabelos Black’s Powers, eu começava a ver e admirar as mulheres negras de uma forma diferente do que havia feito até então. Os padrões de beleza foram se alterando, aos meu olhos e eu, encantado e cada vez mais envolvido nesse mundo negro, deixava-me perder na noite da alma.

Aquele foi o momento em que o “Nós” oferecia significado às nossas vidas em um mundo em que “Eles” – com sua violência policial, discriminação, e opulência – eram sempre muito hostis.

Lembro-me de um incidente na porta do Club House que expressa bem esse sentimento:  Numa certa noite, enquanto aguardávamos para entrar, um carro passou por nós em alta velocidade e avançou o farol vermelho em uma manobra bastante arriscada. Em seguida, um carro de polícia surgiu em sua perseguição, mas, inesperadamente, os carros que estavam posicionados entre o fugitivo e a polícia pararam no farol vermelho, não restando passagem aos policiais, que se aproximavam em velocidade máxima. Ao frear bruscamente, a viatura começou a derrapar na avenida, enquanto subia desgovernada pela calçada até capotar sob um orelhão e um poste.

A reação dos jovens que assistiam foi unânime, mais ou menos 500 pessoas na rua olhando e torcendo em coro: Vai, vai, vai… Foi!

Ninguém disfarçou a euforia… E assim como acontece no estádio após um gol inesperado do time do coração, os gritos de comemoração tomaram conta do ambiente. No auge dos meus 13 anos, depois de já ter sido tratado como lixo pela polícia, inúmeras vezes, não esperava outra reação dos presentes.

A conversão

Era uma quinta-feira qualquer de 1995, em um momento em que matar aula para cantar rap na porta da escola já virara rotina, rumamos em um grupo de 8 amigos para o centro da cidade para assistir á um show de rap gratuito. Até aquele momento, eu não dava a mínima para o fato de que o show fora organizado na cidade em comemoração aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares. A única coisa que me importava era que aquela seria a oportunidade de ver ao vivo o show do melhor grupo de rap do Brasil.

Embora soubesse que era Negro e já havia vivenciado diversas situações desagradáveis por causa da minha cor, até aquele momento o racismo não era um tema que despertasse muito a minha atenção. Mas isso estava para mudar. No caminho, enquanto seguíamos conversando sobre mulheres, ou cantando rap pelas ruas escuras, empolgados para chegar ao show, fomos surpreendidos por uma desagradável surpresa:“É A POLÍCIA, CARALHO, MÃO NA CABEÇA, FILHO DA PUTA! ENCOSTA NA PAREDE VAI, VAI, VAI NEGUINHO… SE TEM DROGA OU ARMA FALA LOGO!”

O que se seguiu, em meio às agressões físicas e simbólicas das mais variadas, foi uma cena que não esquecerei. Antes de iniciar a revista, um dos policiais olhou para três dos nossos amigos (curiosamente os brancos da turma) e disse a cada um: “Você, você e você! VAZA PORRA, VAZA!…” e os três  seguiram em frente sem serem revistados. Ficamos nós, os cinco pretos, para sermos revistados e humilhados enquanto nossos três amigos seguiam em frente de cabeça baixa.

Depois de alguns longos e intermináveis minutos de violência física e simbólica, fomos liberados e nos juntamos aos outros três amigos que nos esperavam, envergonhados, na esquina… Ninguém ousou olhar nos olhos um do outro. Seguimos todos em direção ao show atravessados por um silêncio que só foi quebrado pelo som dos scratcsh do DJK. L. Jay.

Ao chegarmos, as sensações foram múltiplas. Havia mais de 2 mil pessoas curtindo um som em sintonia e nós, fragilizados como estávamos, nos sentimos acolhidos ali, na medida em que confirmávamos que “a maioria por ali se parecia com a gente” [[v]]. Ao escutar “O homem na estrada” [[vi]] cantado ao vivo no palco, eu sentia que a musica falava diretamente para nós.

De repente o som foi interrompido…

E Mano Brown, sempre imponente e com muito sangue nos olhos – como se soubesse da violência que acabávamos de sofrer (talvez soubesse) – iniciou um discurso que figurarei a partir do que é possível lembrar:

“Ae mano! O sistema te trata como lixo. Te humilha! Te pisa e dá as costas… mas hoje é o dia de provar que você é mais. Quem aqui já tomou geral da polícia? Quem aqui já foi seguido numa loja por ser preto?… Aí favela…”

E, em meio ao discurso, KLJ entoava scratchs com os dizeres: “a juventude negra agora tem a vós ativa… Porque quem gosta de nós somos nós mesmos.” Em seguida, a próxima música se iniciou numa sincronia catártica:

Você não me escuta. / Ou não entende o que eu falo. / Procuro te dar um toque. / E sou chamado de preto otário. / Atrasado, revoltado./ […] /  Racionais declaram guerra. / Contra aqueles que querem ver os pretos na merda. / E os manos que nos ouvem irão entender. / Que a informação é uma grande arma. / Mais poderosa que qualquer PT carregada. / Roupas caras de etiqueta, não valem nada. / Se comparadas a uma mente articulada. / Contra os racistas otários é química perfeita / Inteligência, e um cruzado de direita. / Será temido, e também respeitado. / Um preto digno, e não um negro limitado. [[vii]]

Enquanto o grupo cantava, cantávamos todos, juntos e hipnotizados, enquanto socávamos o ar com todo o ódio acumulado e amplificado pelos vermes que haviam atentado contra a nossa dignidade. Alí eu sentia que o sofrimento tinha um sentido: a violência, as mortes precoces, as mortes em vida, o lixão que nos serviu de parquinho, o asfalto que não chegava ao Sítio, a sexta série F. Tudo aquilo se encaixava nas letras de rap que eu já havia ouvido, mas que, agora, depois de uma calorosa revista policial, inflamavam como coquetéis molotov. Eu não seria mais o mesmo.

Toda conversão exige símbolos de rupturas com o momento anterior e, com o passar dos anos, ao entender que o rap era parte de um movimento maior chamado hip-hop eu fui buscando me enquadrar naquilo que identificava como postura adequada a um “verdadeiro MC”. Inspirado em alguns raps que havia ouvido, decidi comprar o livro A Autobiografia de Malcolm X.

O livro acrescentou muito à minha forma de interpretar o mundo e, entre as várias contribuições políticas, teóricas e ideológicas que proporcionava, apresentou-me alguns conflitos existenciais muito profundos. Segundo  Malcolm X, a destruição da identidade seria uma das principais estratégias de dominação colonial. Eu e os manos que colavam comigo entendemos a crítica ao Negro que “não sabe de cor o seu próprio RG”, na música “Negro Limitado”, dos Racionais, que se referia às pessoas que se perderam em meio às  agruras do racismo e não sabiam mais quem eram.

Malcolm argumentava que uma das estratégias de “destruição da identidade” do escravo era substituir o seu nome e lhe atribuir o sobrenome do seu senhor. Assim, os descendentes das pessoas escravizadas, mesmo que com nomes próprios escolhidos por seus pais, carregavam o sobrenome dos seus algozes opressores. O Mendes, Faustino, Silva, Oliveira, e tantos outros sobrenomes utilizados pela população negra na diáspora, seriam, segundo Malcolm, a marca colonial que portávamos. A nossa verdadeira identidade não poderia ser fornecida pelo número do RG  e, nesse sentido, alguns de nós entenderam que a mudança do nome ou do sobrenome seria um símbolo de repúdio à identidade escravizada.

Nem todos os hip-hoppers da nossa época pensavam assim, mas a impressão que eu tenho é que a atitude de auto-nomeação nos proporcionava uma sensação de poder. Parecia ser a possibilidade de (re)criar a própria identidade a partir do contexto e da ideologia que defendíamos. Não posso dizer que as motivações dos outros MCs foram as mesmas que as minhas, mas, naquele momento, foi assim que interpretei o surgimento de nomes: Mano Brown, Nino Brown, Nina Brown, Ice Boy, etc. Num segundo momento, com o avanço daquilo que classifico aqui como hip-hop militante, os nomes tornam-se ideologicamente mais explícitos, revelando aspirações políticas de esquerda ou mesmo afrocentristas: Rapper Pirata, Nando Comunista, Aliado G. Bá Kimbuta, Lio Nzumbi, Robson Dio, Edson Ike, Honerê Amim OADQ, Ike Banto e etc.

No meu caso, depois de me interessar pela cultura banto, escolhi um nome de língua Kimbundo, que simbolizava guerreiro. O Deivison Mendes Faustino já estava morto e a partir dali, eu me sentia (re)nascendo das chamas, ao assumir o nome de luta Deivison Nkosi.

Eu, que já havia sido crente neopentecostal, alguns anos antes, passava por uma nova conversão, a diferença. Levando em conta todos os limites e as possibilidades desse processo, era que agora o paraíso prometido podia ser conquistado aqui mesmo, na terra, a partir da luta política organizada e os “demônios”, como bem caracterizava Malcolm X ,  estariam ao alcance dos olhos e das mãos e por isso poderiam ser combatidos de frente: playboys, a polícia, o governo e os seus instrumentos de manipulação. Eu havia me convertido e, a partir desse ponto, a maioria das minhas escolhas pessoais seria realizada com base nessa conversão.

As Posses e as ideologias

Juliana (JuSoul), o grande professor Nino Brown e eu em um evento que discutia se o Bit Box era ou não o quinto elemento do Hip Hop Arquivo Dj Kurtz Ano 2001

Passado algum tempo, fui convidado pelo Fião, o mesmo mano que me apresentou o rap na escola,  a compor um grupo de rap. O nome do grupo foi escolhido pelo Douglas Marques, que hoje é um dos melhores DJs da cidade. O nome escolhido por ele foi Crime Cautela. O nome soava bem e o significado, embora hoje pareça simplista, expressava nitidamente  a mensagem que o grupo queria transmitir na época: “Não somos nós que  definimos o que é crime ou não, mas podemos ser enquadrados, então: Cautela!”.

Graças ao grupo, pude conhecer muitas quebradas da região metropolitana de São Paulo. Era uma época muito rica, para quem cantava rap, porque havia muitos shows organizados em todas as partes da grande São Paulo e do Interior. Em alguns lugares, muitos grupos passaram a se organizar em Posses ou Crew, isto é, espécie de organização comunitária voltada ao fomento de eventos culturais ligados ao hip-hop. Conheci a Posse Conceito de Rua, de Embu das Artes; a Associação Cultural Negro Atividades, de Santo André; a Posse Haúsa, de São Bernardo do Campo; a Posse Aliança Negra; o Núcleo Cultural Força Ativa, da Cidade Tiradentes; o Juventude Afro Consciente (Junac), de vários bairros da zona leste de São Paulo e muitos outras organizações  que faziam um trampo fantástico nas periferias.

Grupo de estudos Nucleo Cultural Força Ativa – Fernanda, Wellington, Deivison, Góes – sem data

Lembro-me da primeira apresentação pública do nosso grupo. Foi em um evento de tributo a Steve Biko, um show de rap organizado pela Posse Hausa e pela Associação Cultural Negro Atividades, em Santo André. O frio na barriga foi marcante, mas a apresentação nos possibilitou o contato com outros grupos e, principalmente, outras formas de fazer rap, mais politizadas do que aquelas que tínhamos acesso ouvindo os grupos famosos. Esses novos contatos apresentaram-nos  a necessidade de entender melhor esse “tal de sistema” que dizíamos combater.

Nessa época, chegavam-nos, através de fanzines e mesmo raps de outros Estados, notícias sobre grupos e Posses em todas as partes do Brasil. Ao mesmo tempo, íamos percebendo que os problemas em outras quebradas eram muito parecidos, em qualquer parte do Brasil que observássemos:

Aqui a visão já não é tão bela / Brasília periferia Santa Maria é o nome dela / Estupros assaltos fatos corriqueiros / Desempregados se embriagam o dia inteiro / A boca mais famosa é o puteiro / Onde que só rola me desculpem os roqueiros os metaleiros / É só rap forró e samba os verdadeiros sons do gueto / […] mas só pra te lembrar /  periferia é periferia em qualquer lugar…[[viii]]

As Posses foram fundamentais para o crescimento do hip-hop pelo país porque, além de organizar eventos culturais, promoviam palestras e formavam grupos de estudos sobre temas ligados aos problemas vividos na periferia. Nesta altura, em meados dos anos 2000, a maioria das Posses entendia-se como articulações políticas “contra o sistema” e algumas das mais importantes chegavam a falar em Revolução.

Eu não entendia muito bem o que isao significava na prática, mas me senti pressionado a me articular politicamente. Como não havia Posses na minha quebrada – o Núcleo Cultural Negro Atividades  organizava-se do outro lado da cidade –  propus aos membros dos outros grupos de rap para nos organizarmos.

O Ny, o Flávio, a Érica (Da Bret), o Nego Will e tantos outros, que vieram depois, aceitaram o desafio e, inspirados nos grupos que já conhecíamos,  principalmente o Núcleo Cultural Força Ativa, criamos em conjunto a Posse Direto Consciente e Realista (DCR), aglutinando grupos de vários bairros da Região do Jardim Santo André, Cata Preta e Sítio dos Vianas, região que, além de ser a mais violenta;  até hoje é onde se concentra o maior percentual de Negros da cidade.

Nós, membros da Posse, cantávamos com orgulho a música do RZO, que parecia ter sido feita para nós:

Corre nas veias do preto brasileiro / Nos deixa ligeiros / RAP é o som! / E só pra lembrar aos outros quase todos pretos / Não tem jeito, são quase todos pretos! [[ix]]

Havia, da nossa parte, uma crítica a tudo o que considerávamos vir dos Boys: suas músicas, estética, partidos políticos, movimento estudantil. Tudo isso era visto com muita desconfiança e, em dada medida, afastou muitos de nós da militância partidária, mas, ainda assim, procurávamos estar atentos a tudo o que acontecia no universo político:

A lição meu irmão está aí / Nos ataques a bomba No genocídio em huanda Na pobreza no Haiti / É triste mais eu vi / O clamor materno
Rogando logo o céu o inferno
ao seu filho subnutrido
que aos dezoito não pesava mais que vinte e poucos quilos / Mas de nada adiantava isso
Do outro lado do mundo seu futuro era decidido
num café matinal entre políticos malditos…[[x]]

Foi uma época muito rica de parcerias e alianças políticas. Entramos em contato com diversas vertentes de movimentos sociais e afiliações teóricas, e passamos a frequentar os debates das outras Posses. Criamos o nosso próprio grupo de estudos e iniciamos um trabalho de formação de base a partir da leitura coletiva de livros e de Fanzines[[xi]] que nos chegavam de todas as partes do Brasil. Foi nessa época que eu conheci a Mara – que depois se tornaria Mara Oninjá, uma MC feminista que mantinha contato com diversas Posses do Brasil a partir de fanzines e, durante os shows, fornecia-nos muitas cópias de fanzines politizados para usarmos em nossos grupos de estudos.

Eu e o Ny passamos a representar a nossa organização nas reuniões com a prefeitura na recém-criada Assessoria da Juventude de Santo André, coordenada pela Sueli Chan, e o Centro de Referência da Juventude, coordenado pela Márcia Furquim, bem como a Katia Coelho, que também era funcionária da Assessoria da Juventude. Essas mulheres tiveram decisiva influência sobre a minha caminhada, na medida em que cobravam de nós, que já éramos vistos como militantes de esquerda, uma postura que fosse ao mesmo tempo feminista e anti-racista.

Eu ao lado de Eloa Katia Coelho, Assessoria de juventude, 2001

Foi um momento muito rico, para todos nós, mas me entristece pensar que muitos artistas talentosos ficaram pelo caminho porque precisaram   priorizar ou a família, ou o emprego. Para além disso, a falta de estrutura física para ensaiar se apresentava como um desestímulo para muitos. Depois de algum tempo, a Posse DCR dissolveu-se.

A essa altura,  eu já estava envolvidíssimo com a militância e, a convite da Mara Oninjá e do Marcos, para nos juntamos  ao Geo, Caio, à Angela,  ao Devil,  Elba,  Ney,  Guto, à Shirlei, e ao Riso Di Falange, para fundar uma nova Organização chamada Núcleo R.O.T.Ação (Resistência Organizada de Trabalho e Ação) com a finalidade de  atuarmos  realizando  encontros frequentes de estudos e ensaios musicais. Foi nesse contexto que iniciamos a leitura de Clóvis Moura, Ângela Davis e, em seguida, lemos o Manifesto do Partido Comunista e os grupos de rap, break e de grafite, que colavam com a gente ,  se propunham a ser veículos de difusão das ideias estudadas. Estávamos certos de que faziamos parte, como sujeitos históricos, de um processo de transformação social.

Reunião do Núcleo Rotação – Garagem da Casa do Marcos (Mara, Deivison, Daniela, Emerson, Guto e Shirlei)
Atividade de Hip Hop – Grupo R.O.T.Ação no Sítio dos Vianas – 2002

Um espaço importantíssimo a ser citado nessa trajetória foi o Rap em Festa, organizada anualmente pelo Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca). Essa atividade abria as portas para qualquer grupo de rap que se inscrevesse e, nessa época, tudo o que queríamos e precisávamos era um lugar para mostrar o nosso trampo, que corria à margem do mainstream musical. Para participar, era necessário frequentar, durante seis meses,  alguns debates mediados pelo Fran e a Valdenia, que, na época, eram coordenadores da instituição e importantes referências política para a organização dos trabalhos de base em Sapopemba, distrito localizado na zona leste de São Paulo.

O espaço foi marcante para muita gente que viveu essa época, porque reunia grupos de várias partes do Brasil e possibilitava a difusão de ideias subversivas, troca de fanzines e, sobretudo, a ampliação das alianças políticas entre os grupos artísticos organizados ou não em Posses. Toda essa movimentação política acontecia sem a participação dos grupos de rap famosos, todavia, foi importante porque aglutinava a nata politizada do hip-hop (o hip-hop militante) e contribuiu para fortalecer o que chamávamos de movimento hip-hop.

Durante o Rap em Festa, os debates pegavam fogo e os grupos discutiam com muita paixão e, às vezes, até de forma agressiva, qual era o eixo central da “luta revolucionária”: se era o racismo (posição defendida pelo Junac, de orientação afrocêntrica) ou o capitalismo (defendido pelo Força Ativa, de orientação marxista); a cada debate, todos voltavam para as suas bases mais fortalecidos e armados teoricamente para debater com qualquer playboy de faculdade que pretendesse falar por nós:

Parabéns o diploma e o primeiro capítulo
/ de uma história bem-sucedida, Só pelo ridículo… / estudou em Sorbone? Então enfia no CU – rículo / teoria inútil sim base, bobagem só mais um título /quer falar de mim, da minha cultura, Tia?
/ Se quer entender os pretos não vai ser na academia / Não entende o hip-hop, distorce o candomblé / Teoriza por cima dos seus dez livros de pé
/ Não existe um sociólogo sem prática
/ E sua prática me atrapalha, o saco de teses falhas / Fica puto quando ouvir, mas meu som não é pra vc /  Lava a boca quando for falar de preto no seu TCC
/ O que você aprende no seu livro pra mim é vivido / Cuspo na sua coluna do jornal de domingo[[xii]]

Os debates eram tão qualificados que obrigavam os outros grupos a também se preparar teoricamente. No caso da nossa Posse, pressionados entre as diversas influências teóricas e políticas presentes no Rap em Festa, decidimos nos pautar politicamente por um tripé Raça, Classe e Gênero. A nossa escolha foi influenciada pela presença da Mara e pelos euxaustivos estudos dos textos traduzidos da nossa diva afro-revolucionária, Ângela Davis.

A essa altura, já envergonhado com o nome do meu grupo de rap (Crime e Cautela) e insatisfeito com as letras falando de crime e pobreza, rompi com o grupo e, inspirado na Banda Uafro[[xiii]], de Santo André, compus com a Mara e o Ney, o grupo Amandla Awetu, termo que remonta à luta contra o apartheid africano que significa “poder ao povo”.

Show do Amandla no Espaço Che Guevara – Mauá (2000). Mara Assentewa, Deivison Nkosi, Nem, Gerônimo, Daniela Olinka e Angela Medeiros

O grupo Amandla tinha como mote estético a difusão de “ideias revolucionárias” a partir da performatização de rimas agressivas tocadas ao doce som de violão, berimbau e percursão. Assim, apresentamos-nos em muitas cidades do interior de São Paulo e em outros Estados, como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Porto Alegre:

Vejam bem estão aqui / os herdeiros de zumbi / tá ligado que é foda, / ser preto não é moda / a vida segue andando sempre numa bamba corda / Jamaica, Somália, Ruanda, Haiti / Na França, nos States, no Uruguai ou por aqui / Os dilemas são iguais / Racismo ao provo preto / Privilégio aos europeus e descedentes (é desse jeito)… [[xiv]]

O momento mais glorioso do Núcleo R.O.T.Ação foi quando iniciamos um trabalho de base na Escola Estadual Profa. Clotilde Peluso – que na época era considerada uma das piores escolas da cidade – para oferecer oficinas de rap, grafite e break, e entre uma atividade e outra  mobilizar a comunidade para passeatas em protestos dos mais diversos. A direção da escola confiou em nós e o trampo foi muito bem-sucedido. Para alcançar o sucesso é importante destacar que, entre nós militantes, existiam pessoas de referência no rap, no break e no grafite, além de habilidosos articuladores políticos do grêmio da escola. Nessa época, o grupo aumentou consideravelmente, chegando a ter cerca de 40 integrantes ativos, todos residentes na região do Sítio dos Vianas.

Participação da nossa Posse na reunião do Movimento Negro de Santo André – 2000

Foi nesse contexto de movimentação política intensa que a militância me colocaria frente a um desafio que mudaria mais uma vez o rumo da minha vida.  Kátia, que a esta altura já era uma velha conhecida, começou a nos incentivar a cursar a faculdade. Eu via tudo aquilo com desconfiança, já que, até aquele momento, não havia uma só pessoa que corresse com gente que já tivesse feito faculdade. Na minha concepção, naquele tempo, a universidade era um local reservado apenas para os filhos da elite e, por isso, não fazia sentido gastar energia com esse espaço. Acreditava nos trechos que eu conhecia do Velho Barbudo, que uma possível revolução só poderia se concretizar pelas mãos daqueles que “nada tem a perder a não ser os seus grilhões” e, por isso, até aquele momento, não havia visto razão para me misturar com os playboys.

Além do mais, até aquele momento, com a exceção de Spensy Pimentel e  sua mongrafia intitulada “O Livro Vermelho do Hip-Hop” a maioria dos contatos que tínhamos estabelecido com  os pesquisadores eram marcados por um certo estranhamento. Queríamos “destruir o sistema” e a faculdade, para muitos dessa geração de militantes das ruas, representava ser parte dele e não a sua contraposição estando, portanto, lamentavelmente fora dos planos de muitos intelectuais brilhantes que hoje mal conseguem sustentar suas famílias.

Mas a Kátia era osso duro de roer e, embora eu acreditasse que a venceria pelo cansaço, comecei a lhe dar ouvidos e no ano de 2000 eu acabei me inscrevendo no vestibular do curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André. Acho que prestei o vestibular só para ela parar de encher o saco.

Paguei a inscrição do vestibular graças a uma vaquinha promovida entre  Matilde Ribeiro, futura ministra daSecretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir)/Governo Federal, que, na época era assessora na Prefeitura de Santo André; Maraisa, grande intelectual do movimento negro de Santo André; Sueli Chan; e a própria Kátia.

Eu gostava muito de cosmologia e demonstrava algum interesse por psicologia, mas, como era militante, escolhi o curso de Ciências Sociais na Fundação Santo André, visando a apoiar a Posse com os estudos. Fiz a prova do vestibular com bastante descrença e cansaço, já que passara a madrugada anterior acordado, me apresentando em um show de rap. Entre pescadas e escritos, terminei a prova e, para a minha surpresa, fui aprovado, e logo entraria em uma nova fase da minha vida.

A essa altura, depois de trabalhar em todo tipo de emprego, tais como: feirante, balconista, ambulante, lavador de carros, catador de papelão, office boy durante a adolescência, tinha dificuldade para vencer o desemprego iniciado na época do alistamento militar. Depois de muita procura, consegui trabalho em um Projeto Social gerenciado pelo Movimento Nacional de Defesa dos Direitos dos Favelados (MDDF).   Fui contratado  como “educador social” registrado, e, na Prefeitura de Santo André, eu era um “oficineiro de rap”.

Encruzilhadas políticas

Se, por um lado, eu sabia que a nossa forma de fazer hiphop não era hegemônica, por outro, sabia que não estávamos sós. Ao longo da caminhada, fomos nos deparando com diversos tipos de militância  e agremiações ideológicas e, enquanto isso, o nosso repertório político foi se ampliando. Nessa trajetória, um dilema constante, para nós, sempre foi o envolvimento com os partidos políticos de esquerda.

Se, na década de 1990, nós nem mesmo éramos considerados “movimento social” pelos teóricos e políticos partidários, a partir dos anos 2000, na medida em que avançava o poder de mobilização do hip-hop,   víamos crescer o interesse dessas instituições por nossas agendas.

Em alguns lugares do Brasil, essa relação foi positiva e fortaleceu articulações de hip-hop já existentes, mas, em outras, o assédio foi agressivo e destrutivo, dada a nossa inocência diante de uma lógica viciada. A resposta do Nucleo R.O.T.Ação foi se afastar relativamente dessa forma de fazer política. Esse afastamento nos causou algumas tensões com grupos políticos ligados ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e ao Partido do Trabalhadores (PT), da cidade, ao passo que também  nos possibilitou a aproximação com  grupos do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), com   núcleos do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e com o  saudoso Espaço Che Gevara, em Mauá.

Em 2002, graças à articulação com esses grupos, tivemos a oportunidade de viajar para Porto Alegre/RS e participar do II Fórum Social Mundial. As notícias do I Fórum Social Mundial davam conta de que o processo foi exitoso, ao reunir militantes representantes de movimentos sociais de todas as partes do globo terrestre. Estávamos empolgados para apresentar o grupo Amandla em um evento internacional e ainda estabelecer parcerias que pudessem fortalecer o nosso trabalho de base na quebrada. Viajamos a Porto Alegre em sete representantes do Núcleo R.O.T.Ação.

O Fórum Social Mundial superou as nossas expectativas: Debates qualificados, teorias de ruptura, experiências inesquecíveis, relações pessoais e apresentações culturais. Tudo ia muito bem, até que um incidente político abriria uma nova etapa na história do movimento hiphop brasileiro. A União da Juventude Socialista (UJS), grupo de jovens ligados ao PCdoB, organizou um evento de hip-hop no Acampamento de Juventude [[xv]]. Nesse evento, os representantes da UJS apresentaram um documento intitulado:  Manifesto do Movimento Hip-Hop.

Durante a leitura, Lamartine, um MC do Grupo Clan Nordestino, do Maranhão, subiu ao palco sem autorização dos organizadores, pegou o microfone e perguntou aos presentes quem dali era integrante do hip-hop.  Cerca de duzentas pessoas ergueram o braço. Em seguida, Lamartine perguntou quais dos militantes presentes havia assinado aquele “Manifesto” que falava em nome do hip-hop. Ao ver que ninguém havia levantado as mãos, Lamartine rasgou o documento e disse que havia chegado a hora de os partidos políticos pararem de utilizar o hip-hop como objeto.

A atitude radical do MC foi seguida por um grande tumulto, que se intensificou quando os organizadores do evento cortaram a eletricidade dos microfones para calar Lamartine. Em resposta, outro MC propôs que nos reuníssemos, somente artistas  e militantes do hip-hop,  do lado de fora do evento para conversar sem intervenção externa. Assim o fizemos, e, nessa reunião, em que se encontravam pessoas de todo o Brasil, foi denunciado o “uso político escuso do hip-hop por parte de Organizações não Governamentais (ONGs), Partidos Políticos, Governos e empresas privadas” e, em resposta, foi proposto que criássemos uma articulação nacional de hip-hop para que tivéssemos voz própria.

A ideia proposta, e aceita por todos nós, era que estivéssemos mobilizados nos bairros, cidades, estados e regiões do país, com vistas a uma articulação política autônoma e autofinanciada a partir das produções artísticas locais dos próprios grupos. Voltamos para nossos Estados muito felizes e com o compromisso de construir, durante o ano, um Fórum Nacional de Hip-Hop autogestionado.

O ano que se seguiu foi de intensa movimentação para todos nós. Em resposta às tarefas assumidas, organizamos diversas articulações de hip-hop na Região do ABC Paulista, Região de Campinas, Região de Sorocaba, Bauru, Salto, São Carlos, no município de São Paulo, e em várias outras localidades. Para subsidiar e centralizar esse rolê,criamos o Fórum de Hip-Hop do Estado de São Paulo. Ao Núcleo R.O.T.Ação foi atribuída a responsabilidade de viajar para outros Estados que não haviam enviado integrantes para o II Fórum Social Mundial, com o objetivo de estimular a organização de Fóruns Estaduais nesses locais e assim o fizemos.

I encontro de Hip Hop – criação do Fórum Estadual de Hip Hop de São Paulo (2002)

Na ocasião, conseguimos criar uma estrutura organizativa com presença   em muitos Estados e municípios e, a partir daí, foi possível descobrir que havia centenas de Posses e talvez milhares de grupos de rap, break ou grafite espalhadas pelo Brasil; a maioria sedentos por transformar a realidade em que estavam inseridos. O hip-hopmilitante, outrora ignorado pelos grupos famosos de rap, marcava a sua presença em todo o País e nós, como parte disso, sentíamo-nos cumprindo uma profecia:

É o Terror é o terror / Rap nacional é o terror que chegou é o terror / Aí sistema sou o rap nacional / Linha de frente trema! / Minha mente talvez algum humano não entenda / Será que algum cientista desvenda esse mistério / Eu quero gentilmente / Eu quero o raio x do meu cérebro / Eu quero saber porque eu penso diferente / Quem morre no dia a dia ladrão é gente / Da gente um desespero / Um sonho um pesadelo o sangue / O crime está no ar e você é mais um herdeiro / Vou novamente me apresentar / Sou revolucionário sou nova forma de pensar. [[xvi]]

Neste mesmo ano, nos aproximamos das organizações de hip-hop do Maranhão e Piauí e criamos, com membros de outros 15 Estados, o Movimento Hip-Hop Organizado do Brasil (MHHOB), que era liderado pelo intelectual e ativista político Preto Ghoes e pretendia se tornar uma organização negra e de esquerda do movimento hip-hop. A missão do Núcleo R.O.T.Ação no MHHOB, segundo pactuado com ele, seria a socialização da nossa experiência em militância de base, e, principalmente, a nossa circulação entre os Estados membros para estimular a criação de grupos de estudos e fomento à organização política. Essa atividade política seria subsidiada pela criação de uma rede autogestada de divulgação e distribuição de produtos (roupas estilizadas, CDs dos grupos membros, e shows) dos grupos [[xvii]]. Nosso plano, a partir dessa rede, era realizar manifestações políticas articuladas ao mesmo tempo nos diversos Estados.

Num primeiro momento, a articulação foi um sucesso e enquanto nos fortalecíamos recebíamos notícias de que outras organizações locais passaram também a se articular em nível nacional. Para nós, as coisas estavam saindo como planejado e, em pouco tempo, poderíamos organizar ações mais agressivas:

Ocupar! O coração da periferia / Resistir aos ataques da burguesia 
Produzir! / Os versos loucomunistas de um novo dia / Clã Nordestino! A peste negra do nordeste. [[xviii]]

No ano seguinte, quando regressamos a Porto Alegre para participar do III Fórum Social Mundial, já havia diversas Organizações Nacionais de Hip-Hop estruturando-se, algumas das quais, atualmente, são bastante conhecidas, e, em dada medida, a realização, durante o evento, do I Encontro Nacional de Hip-Hop foi marcada por disputas gigantescas. A vertente militante do Hip-Hop estava se organizando e enfrentando os problemas comuns da militância de esquerda no Brasil. Nós, do MHHOB, nos sentíamos fortalecidos para esse embate e, nele, nosso líder incontestável era o Preto Ghoez, MC do Grupo Clã Nordestino, do Maranhão.

Da minha perspectiva na época, o Ghoez, em sua genialidade e rara habilidade política, conseguia dialogar e aglutinar  em torno de si  setores diversos, como os ongueiros (o pessoal que queria montar uma ONG para captar recursos e oferecer oficinas de arte e educação); os partidários (militantes do hip-hop vinculados principalmente ao PT e ao debate sobre políticas públicas); os artistas (que priorizavam a sua produção artística e, em geral, não tomavam muito partido das discussões políticas que se travavam) e nós, os que se achavam revolucionários (e, embora artistas, priorizássemos a luta política a partir de posturas que acreditássemos ser radicais).

No entanto, a Organização levaria um duro golpe do destino. No dia 29 de janeiro de 2004, Márcio Vicente Góis, o Preto Ghoez, principal mentor e articulador político do MHHOB morria em um acidente de carro. A Organização, agora acéfala, começa a desabar em intensos embates políticos/ideológicos e dissidências internas que custaram alianças e amizades.

No âmbito nacional, as disputas por legitimidade entre as diversas organizações nacionais de hip-hop também crescia. Se o ano anterior foi marcado pelo desejo de unidade política e aglutinação de forças em nome de uma autonomia em relação aos partidos, às empresas e ao governo, agora, com a comemorada eleição do Governo Lula, as coisas começavam a mudar substancialmente.

O então ministro da Cultura, Gilberto Gil, avisou que estaria disposto a dialogar com as organizações de hip-hop para estabelecer parcerias em um projeto inovador que eles nomearam como Ponto de Cultura. O projeto consistiria em disponibilizar recursos às organizações culturais atuantes, de forma potencializar as suas ações comunitárias. Tudo muito atraente e aparentemente coerente com o que se vinha discutindo. Entretanto, o que se seguiu foi uma corrida fratricida por legitimidade política. A disputa resultou no desmembramento do Fórum Nacional de Hip-Hop,  no redirecionamento das atenções e dos discursos – anteriormente  voltados à auto-gestão política e financeira – para uma busca pelo reconhecimento do Estado.

Para nós, do Núcleo R.O.T.Ação, a situação piorou ainda mais quando, em 2004, após o golpe político/militar no Haiti, o Brasil aceitou a liderança das tropas da Organização das Nações Unidas (ONU) naquele país. Tentamos iniciar uma campanha nacional pela retirada das tropas brasileiras, mas, na época, a maioria dos grupos que compunham o MHHOB temia que a manifestação fosse atrapalhar as negociações e a corrida pelos Pontos de Cultura. A discussão foi seguida por um racha no MHHOB e nosso grupo retirou-se da organização, assim como  outros parceiros do Rio de Janeiro e Santa Catarina, para  fazer uma campanha pela retirada das tropas do Haiti.

A reação do Governo ao nosso protesto foi criar uma campanha que se contrapunha à nossa. A campanha intitulada Zele pelo Haiti, organizada pela Seppir/PR propunha financiar shows de rap com artistas famosos e anônimos para arrecadar material escolar que seria enviado ao Haiti; tudo isso, desde que não se mencionasse a presença das tropas brasileiras. Foi um golpe de mestre: A campanha Zele pelo Haiti não chegou a emplacar, mas cumpriu o seu papel ao enfraquecer a campanha pela retirada das tropas e nos isolar politicamente.

Passado algum tempo, foi possivel perceber que muitos grupos  dessa época – como a Rede Mocambos, Coletivo Quilombaque, a Casa de Cultura Tainã e outros espalhados pelo País – conseguiram aproveitar essa abertura política criada no Governo Lula e desenvolver parcerias frutíferas com o Estado, que fortaleceram as ações que já existiam e/ou ainda incentivaram novos polos de resistência política e cultural. Mas também é verdade que outros tantos, em meio às exigências burocráticas implícitas a essas parecerias, acabaram por se atolar na institucionalização, para se converterem em expressoes empobrecidas dos aparatos neogovernamentais. Em meio a essas duas perspectivas pragmáticas, seguimos em frente, endurecidos por nossas pretensas perspectivas revolucionárias, em um universo político em que a “revolução” ficava cada vez mais distante.

Fala no IV Seminário Internacional de Luta Contra o Neoliberalismo, RJ – 2007

Desgastados e, a essa altura, já bastante distantes de nossa base de atuação no Sítio dos Vianas – onde tudo começou – o Núcleo R.O.T.Ação desiste dos esforços de articulação nacional e tenta voltar-se para as suas origens. Entretanto, uma série de fatores, dentre os quais destaca-se a nossa excessiva “intelectualização” e dedicação exclusiva às articulações políticas em âmbito nacional, tiveram como consequência a nossa desmobilização nas quebradas em que exercíamos alguma influência.

Para além disso, o assédio exercido por grupos organizados a alguns militantes do R.O.T.Ação apresentava conflitos que nem sempre podíamos superar. O tráfico, a Igreja e os partidos políticos sempre disputaram nossos quadros, mas, nessa época de crises, perdemos três dos mais brilhantes membros do grupo para essas agremiações. Progressivamente, o Núcleo foi ficando sem a capacidade de influenciar a dinâmica da quebrada e se perdeu em um processo progressivo de dissolução.

“Os tempos mudaram, Neguin!

Hoje cedo, quando eu acordei / Não te vi, eu pensei em tanta coisa / [..]. / Vagabundo, a trilha é um precipício, tenso, o melhor / Quero salvar o mundo, pois desisti da minha família e numa luta mais difícil / A frustração vai ser menor / Digno de dó, só o pó, vazio comum / que já é moda no século 21 / Blacks com voz sagaz gravada / Contra vilões que sangram a quebrada / Só que raps por nóiz, por paz, mais nada / Me pôs nas gerais, numa cela trancada / Eu lembrei do Racionais, reflexão / Aí, os próprio preto num tá nem aí com isso, não / É um clichê romântico, triste / Vai perceber, vai ver, se matou e o paraíso não existe / Eu ainda sou o Emicida da Rinha / Lotei casas do sul ao norte / Mas esvaziei a minha / E vou por aí, Taleban / vendo os boy beber dois mês de salário da minha irmã / Hennessys, avelãs, camarins, fãs, globais / Mano, onde eles tavam há dez anos atrás / Showbiz como a regra diz, lek / A sociedade vende Jesus, por que não ia vender rap / O mundo vai se ocupar com seu cifrão / dizendo que a miséria é quem carecia de atenção[[xix]]

Um dia desses, na calada da noite, quando eu voltava pra goma injuriado, com uns livros nas mãos, parei na viela, como de costume, para cumprimentar os irmãos e lá, depois de uns minutos de ideia, um camarada falou-me: Aí neguin, cê é mó orgulho pra os moleques daqui… Cê tá ligado que os mulekes precisa de mais gente assim, correndo pelo certo. Eu reagi com emoção, de ouvir aquelas palavras, mas sem saber o que dizer, e ainda pensando nas dificuldades relacionadas à militância respondi, na humildeOw Meu Bom, agradecido pela ideia… mas é foda, Mano… não é fácil ser homem de aço no dia a dia” [[xx]].

Enquanto eu pensava na música do DMN, ele interrompe minha brisa para dizer: Os tempos mudaram, Neguin… Mas, de qualquer forma, é nois que tá, Meu Querido! Despedi-me da rapa e voltei para casa pensando: Realmente, os tempos haviam mudado!

Desde a década de 1990, quando essa história começa para mim, muita coisa havia mudado em São Paulo e a favela já não era mais aquele amontoado de barracos tortos no barro escorregadio. Aliás, muita gente agora preferia não se referir à quebrada como “favela”, dado a presença de asfalto, alvenaria e ônibus passando perto. O próprio Crime havia mudado e as suas novas dinâmicas passaram a ser sentidas por todos, independentemente da sua função na cadeia produtiva.

Não se viam mais tiroteios e mortes a toda hora e as disputas de território passaram a ser resolvidas longe dos olhos de quem num era do corre. Ao mesmo tempo, os confrontos empreendidos em 2006, pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), com a Polícia Militar, tiveram um impacto político e psicológico gigantesco em parte da juventude da periferia. A impressão que eu tive, naquele momento, é que, nas quebradas, onde a polícia sempre violou direitos e agiu com truculência – aquele enfrentamento dialogou com um desejo coletivo de vingança, presente em gente que nem era envolvida com o corre.

Manifestação em São Bernardo contra a violência policial (2006) Atividade preparatória para o ENJUNE – Na Imagem, Mara Assentewa, Carlos Wellington, eu e Honerê Oadq

Em certa ocasião, durante o ano de 2006, um ex-integrante do Núcleo R.O.T.Ação e, naquele momento, envolvido com o tráfico de drogas, desabafou em resposta aos meus “comentários sociológicos” sobre o sequestro de uma equipe de jornalistas da Rede Globo pelo PCC:  Cê é loco, filhão? Enquanto os vermes passam o cerol na quebrada, a militância política fica falando e falando, mas faz pouco… Já o Partido conseguiu fazer em pouco tempo o que vocês sonham, mas nunca tiveram a capacidade...

O fato é que a realidade estava mudando e o hip-hop que eu ajudei construir parecia estar ficando para trás. “Outros atores entraram em cena”, e, num primeiro momento, no meu bairro, o que passou a mexer com o emocional dos mulekes era passear pelas ruas com um carro devagarinho, escutando o Funk Proibidão.

Mas se mexer com nós / A bala come / O bonde da capela mete bala até nos home (2x) [[xxi]]

Em um segundo momento, a sexualidade, tema que sempre buscamos limitar nas nossas produções, foi retomada de forma explicitamente provocativa e desinibida pelos funkeiros. A associação à pornografia, ou mesmo o confronto a alguns valores sexuais, foi uma novidade que atraiu muitos jovens aos bailes enquanto esvaziava os nossos eventos “politicamente corretos” e, se pá, até recalcados.

No caso do hip-hop as mudanças também eram visíveis: a relação com ONGs, partidos políticos e mesmo com os governos locais de esquerda, foi sempre marcada por ambíguos desafios. Se antes – com raras e conhecidas exceções –, não era possível a um MC sustentar-se financeiramente, a partir da sua arte, agora, começavam a surgir diversas oportunidades de profissionalização que nasciam já prenhes de limites políticos e ideológicos dos mais diversos. Como oficineiro, ou cargo comissionado, a energia criativa e rede de contatos do artista/militante ficava a serviço de forças e interesses que nem sempre eu controlava.

Outro fator importante a ser considerado, nesse “novo cenário”, foi o avanço da indústria fotográfica sobre os generos artísticos relativos ao hip-hop. Aquilo que na década de 1990 nem era considerado música, pelas rádios comerciais –  com  excessão das rádios comunitárias, que foram praticamente eliminadas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), na primeira década dos anos 2000  – passou a ser absorvido e vendido como mais um produto rentável. A observação do Emicida é perfeita, quando argumenta: “A sociedade vendeu Jesus, por que não ia vender rap?” [[xxii]]. Vendeu, mas o fez de forma a incentivar o tipo de mercadoria que seria produzida, na medida em que só veiculava (repetidamente) um único modo de fazer rap – o que se pautava pela formulazinha crime, sangue e favela – condenando ao limbo todas as produções que fugiam dessa lógica.

Se, na década de 1990, a crítica social, mesmo que garantida por chavões políticos e pretensões juvenis radicais,  era apresentada com regra a qualquer hip-hopper que almejasse algum respeito no movimento, chegamos à segunda década do século XXI com um contexto em que a “crítica” à miséria foi se limitando quase que a uma apologia da miséria material e da espiritual.

O grupo de rap (Amandla), que me acompanhou, secundarizado por todo esse percurso, foi ficando cada vez mais sem espaço entre as minhas prioridades e o desafio criativo de fazer rap político com banda musical tornava a nossa sobrevivência cada vez mais difícil, em um cenário que ainda não estava preparado para isso. A saída da Mara desfalcou o grupo, mas ainda resistimos por muitos anos, tendo ao nosso lado a presença alternada de artistas brilhantes, como a Katiara, a Fabiana (Bio), o Bebe do Gois, o Gigante, o Edson Ike, o Bá Kimbuta, a Silvia, a Dani Olinka, a Ângela, o Buias, e outros, como o Ticha, o Robson Dio e etc., que nos ajudavam sempre que precisávamos. Mas o tempo passou.

O mundo havia mudado e com ele, eu, já pai de um filho maravilhoso, ingressando no mundo acadêmico como professor e pesquisador e ainda militante de outras frentes, como parte do movimento negro, através do Grupo Kilombagem – daria outro filme – já não era mais o mesmo.

Sempre achei exagerada e meio religiosa aquela assertiva que dizia “o hip-hop salva”. Mas olhando “postumamente” para essa caminhada, que continua viva por outros meios, percebo que, a partir dela, eu pude ver, sentir e viver coisas que a maioria dos manos que cresceram comigo nem imaginam. Corta o coração saber que vivi ricos momentos, ao lado de brilhantes intelectuais, artistas e/ou articuladores políticos que, por falta de estímulo, oportunidade, ou amor próprio, ficaram pelo caminho.  De todo modo, a MC Larissa Borges Amorim tinha razão, em sua advertência. Não é possível passar por tudo isso e não trazer no corpo e na alma esse legado a cada novo ciclo e desafio que encaramos.

Reconheço que o hip-hop foi muito maior do que as cenas e perspectivas que eu figurei neste texto e, mesmo ao fim do período aqui descrito, ele seguiu renovando-se. Alguns antigos artistas, como o Bá Kimbuta, Marechal, OPNI, e outros, conseguiram se renovar esteticamente, de forma a dialogar com os anseios das atuais gerações e outros, frutos desses novos tempos, como Opaninjé, Emicida, conseguiram inovar a forma e o conteúdo do hip-hop,apresentando-lhe respostas para perguntas que não fomos capazes de fazer em nossa época.

Se essas novas perguntas, bem como as possíveis respostas, são coerentes e adequadas, aguardemos as futuras reflexões e memórias de outros MCs. Da minha parte, resta um respeito muito grande a quem fica e uma coleção de histórias que não cabem nestas páginas.

Diretamente de outros palcos, mas não morto, “Tenta me catar se for possível” [[xxiii]], pois aqui quem fala é Deivison Nkosi, mais um sobrevivente.

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[i] Reviso essas linhas em outubro de 2014 quando o Preto Goes – que será melhor apresentado ao longo do texto – completaria 43 anos de idade. É em sua memória que dedico esse texto para, quem sabe, os que estão chegando não se esqueçam que “os nossos passos vêm de longe”.  Ao escrever o manuscrito, contei com as preciosas contribuições da a Jornalista Vilma Neres do Rio de Janeiro, do Mc Riso do grupo De Falange e do intelectual saxofonista Edson Ike de Mauá, e dos integrantes do grupo de pesquisa “Na Mergem”, coordenado pelo professor Gabriel Feltran,  a todas essas pesssoas sou muito grato.

[ii] Trecho da música: Senhor Tempo Bom. Album Prete Atenção (Thaide e Dj Hum, 1996). Ver música completa: https://www.youtube.com/watch?v=4JDcbop5fjc.

[iii]  Trecho da música Fórmula Mágica da Paz. Album Sobrevivendo no inferno (Racionais MC’s, 1997). Embora a música tenha sido gravada em 1997, já era cantada pelo grupo em shwos ao vivo desde 1995. ver:  https://www.youtube.com/watch?v=nCBjkrHJ0gs.

[iv] Trecho da música: Rajada. Albun: Enxergue seus próprios erros (Consciência Humana, 1993). Ver: https://www.youtube.com/watch?v=GpypjqXMGbg .

[v]  alusão ao trecho “e a maioria por aqui se parece comigo” da música: Fim de Semana no Parque, Álbum: Raio X do Brasil(Racionais MC’s, 2003). Ver: https://www.youtube.com/watch?v=37uL-WfTBx0 .

[vi] Música Um Homem na Estrada. Álbum: Raio X Brasil (Racionais MC’s, 2003). Ver: http://www.youtube.com/watch?v=02-h9t0VpVI

[vii]  Música: Negro Limitado. Álbum Escolha o seu caminho (Rcionais MC’s, 1992).Ver: https://www.youtube.com/watch?v=diRzSxMgDmY .

[viii]  Trecho da música: Brasília Periferia parte 1. Álbum Dia a dia da Periferia (GOG, 1994),. Ver: http://www.youtube.com/watch?v=9geTcAG2dV8.

[ix]  Trecho da música Assim que se fala. Album Todos são Manos (RZO, 1999). Ver: http://www.youtube.com/watch?v=E_HMcE4ThGE&feature=related .

[x]  Trechos da música Assassinos sociais. Álbum Dia a dia da Periferia (GOG, 1994). Ver: http://www.youtube.com/watch?v=IXPdwNoZdYQ.

[xi]  Os Fanzines eram veículos de informação informal, criado artesanalmente. A minha geração conheceu este instrumento através do contato com alguns integrantes do movimento Anarco-Punk.

[xii] Trecho de música ainda não gravada gentilmente cedido pelo compositor MC Raphão. É nois q tá mlk!

[xiii] Fomos completamente influenciados pela estética e ideologia do Grupo Uafro. Robson Dio,  Preto Bá (que depois se tornaria o grande Bá Kimbuta) e Edson Ike além de nos ajudar em muitas situações, ofereciam-nos uma ideia muito sofisticada do que era fazer música. Ver a música Descobrimento segundo Adal gravada em 2005, mas cantada desde a década anterior: https://www.youtube.com/watch?v=b8eLu4-2Etw.

[xiv]  Trecho da música: A luta negra não se cala. Cantada (mas nunca oficialmente registrada) pelo grupo Amandla: verhttps://www.youtube.com/watch?v=u-oOSEcXjfk. Veja também a música Emancipação Pretahttps://www.youtube.com/watch?v=uwVzrdyCCew  e a música Bonecas brancas para meninas pretashttps://www.youtube.com/watch?v=_HHy3uJcgXc.

[xv] Espaço do Fórum Social Mundial destinado a atividades auto-gestionadas ligadas ou protagonizadas pela Juventude participante.

[xvi] Trechos da musica É o Terror. Álbum: CPI da Favela. (GOG, 200O), Ver: http://www.youtube.com/watch?v=-zAWu6UYYyw.

[xvii]  Para entender as pretenções políticas e econômicas implícitas à essas propostas é fundamental a leitura do artigo do MC Joge Hilton (MIRANDA) entitulado: Relação de Mercado e Trabalho Social, disponível em:futraco.wikispaces.com/file/view/HipHopMercado.doc e a dissertação de mestrado da MC Jaqueline Jaqueline Lima dos Santos, entitulado Re–Significando a negritude através do movimento Hip Hop (2007).

[xviii] Interludio: Ocupar, Resistir e Produzir.. Álbum, A peste negra (Clan Nordestino, 2003). Ver: http://www.youtube.com/watch?v=tY40K-qshyA.

[xix] Trecho da música Hoje cedo. Album O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui. (EMICIDA, 2013). Ver: https://www.youtube.com/watch?v=AaHbRJYapJ0.

[xx]  Referencia à música H.Aço do album Saída de Emergência (DMN, 2002).. Ver:https://www.youtube.com/watch?v=vonxGs1mSRw.

[xxi] trecho da música Se mexer com nóis (MC Careca e MC Pixote, data não identificada). Ver: http://www.youtube.com/watch?v=wZnYcn6XIEw.

[xxii] Trecho da música “Hoje cedo” do album “o glorioso retorno de quem nunca esteve aqui (EMICIDA, 2013). Ver: https://www.youtube.com/watch?v=AaHbRJYapJ0 .

[xxiii] trecho da música Tenta me catar se for possível (Bá Kimbuta, 2012). Ver: https://www.youtube.com/watch?v=P0l0K_qFoFc.

Uma resposta em “Memórias de um MC: relatos de uma caminhada a partir do hip hop militante”

O mano @Deivison me passou esse texto! e que texto, gente! que gira em torno da sua travessia intersubjetiva, histórica, política e militante de um MC de “rap” e de “hip-hop”. Travessia que o autor chama de “memórias de um MC” e que é escrita com e através da palavra, na retomada de uma memória contextualizada e presentificada desde sua infância, em palavras, fotografias, vídeos e letras de música, em caminhos de trajetórias educacionais, de movimentos sociais, de construção como sujeito político, de gente que escreve com a “favela no corpo” (e isso aqui me representa!) e se reinventa na nomeação, sob a influência de Malcom X. “Griot contemporâneo”, sim! pois nada nessas memórias se vive e se expressa impunemente. Lendo esse belíssimo texto, aprendi muito sobre o Brasil e sua formação social, em contexto situado. Eu diria ser um texto etnobiográfico, que não é limitante nem enrijecido na esfera do “eu”; ao contrário, o que lemos aqui nos leva a entender outros movimentos do mundo social. Aqui o público e o privado, o local e o global (para usar os termos dos “teóricos”) formam encruzilhadas, múltiplas e até rizomáticas da construção como sujeito negro. É nois!!!, pois nunca deixamos de ser:
“Ae mano! O sistema te trata como lixo. Te humilha! Te pisa e dá as costas… mas hoje é o dia de provar que você é mais. Quem aqui já tomou geral da polícia? Quem aqui já foi seguido numa loja por ser preto?… Aí favela…” (Mano Brown, Racionais MCs).

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