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Reflexões sobre o Perigo de uma única história

Texto escrito em 19 de junho de 2012, originalmente publicado em: https://kamugere.wordpress.com/2011/06/10/reflexoes-sobre-o-perigo-de-uma-unica-historia/#comments

Por Deivison Nkosi

Gostaria de iniciar esse texto com o belíssimo vídeo da escritora e contadora de histórias nigeriana Chimamanda Adichie.  Esta seção está reservada para comentários, reflexões e críticas a respeito do contexto que estamos vivendo e achei muito oportuno começar por este vídeo.

Como a minha internet é lenta (na periferia de Santo André – Zona Metropolitana de São Paulo – não existe oferta de banda larga L) fui escrevendo enquanto o filme carregava no youtube…

A autora narra a partir de sua trajetória individual o que ela chama de “o perigo de uma história única” e nos expõe questões centrais para pensarmos a nossa época, inclusive no que tange a Lei 10.639/03. Esta lei, que institui a obrigatoriedade de abordagem no ensino público dos conteúdos referentes à história da África, dos Negros no Brasil e das relações raciais em nossa sociedade, alterada em 2008 para  incluir a obrigatoriedade de abordagem da história indígena(Lei 11.645/08) trás como principal pano de fundo a necessidade de se contar o que Chimamanda chamaria de “outras histórias” ocultadas ou distorcidas pelos séculos de racismo presentes em nossa sociedade.

O vídeo dispensa comentários, mas me provoca a refletir sobre aquilo que é o objetivo central deste blog. Como contar as “outras histórias” (ignoradas ou distorcidas) sem que se perca o uno que nos liga enquanto seres humanos?

A história humana enquanto processo de desenvolvimento do ser humano em seu fazer-se no tempo é um processo dialético, contraditório e articulado de fazeres individuais envolvidos no tempo… este processo é tão intenso e objetivo que se torna impossível a existência de “histórias” individualmente isoladas… cada pessoa tem a sua história individual mas o seu desenvolvimento está profundamente marcado pelos limites e possiblidades de seu tempo, bem como a sua relação com os outros indivíduos… o nosso eu se faz na relação com o outro de tal forma que não pode haver “eu” sem os “outros”.

Neste sentido, a história não é uma construção da nossa subjetividade, como defendem os acadêmicos da “Nova História” mas sim um dado real (objetivo) do nosso fazer-se, seja individual ou coletivo. Falar em histórias portanto é sempre delicado, pq exige pensarmos nas influencias recíprocas de uma “história”com outra, da história do meu grupo com a minha história individual”da história do meu grupo com outros grupos.

Considerando que o capitalismo integrou o mundo sob a sua lógica, a nossa história individual nunca foi tão coletiva, de forma que os indivíduos se relacionam multuamente, mesmo sem se conhecer. A ocupação estadunidense no Iraque influencia diretamente no preço do combustível do caminhão que carrega os produtos que compro todo dia, definindo o meu poder de compra, por exemplo, de tal forma que não da mais pra pensar a história do Iraque como se não fosse (também) a minha história.

Reproduzindo um questionamento presente na historiografia contemporânea podemos nos perguntar: A HISTÓRIA é reconhecimento, memória ou interpretação (subjetiva) ou fato concreto, acontecido (objetivo) mesmo que eu não tenha consciencia da sua influencia em minha vida? Uma reposta possível é que a história do Iraque (pra insistir no exemplo) é a minha história, mesmo que eu não reconheça ou não saiba de sua existência real.

VOCÊ QUE É UM LEITOR ATENTO DEVE ESTAR SE PERGUNTANDO: “Mas e o que a lei 10.639/03 (ou a 11.645/08) tem a ver com esta ‘história’?”

O fato é que a HUMANIDADE é a síntese (e não a soma) do conjunto dos indivíduos articulados e se influenciando reciprocamente. Este é um dado da realidade, independente de nosso reconhecimento sobre isto. Ocorre que o RACISMO aliena a nossa percepção sobre a nossa humanidade de tal forma que passamos a não ver (reconhecer subjetivamente) o negro ou o africano como parte da humanidade. A “HISTÓRIA” DA HUMANIDADE passa a ser contada a partir do europeu de forma que por vezes confundimos o universal com o europeu. Falamos em cultura NEGRA (específica), em música NEGRA(específica) em história NEGRA (específica) mas não falamos em cultura BRANCA,  em múcia BRANCA, em história BRANCA… o Branco (europeu) foi apresentado por eles mesmo desde o sec XIX como UNIVERSAIS a ponto de os negros, mesmo os militantes mais radicais no combate ao racismo não se verem no UNIVERSAL.

Esta dificuldade de nos vermos como universal é um dos frutos do racismo e de séculos de negação da nossa humanidade… de exclusão do negro daquilo que se entende por história (a memória, ou a interpretação dos fatos ou da contação de fatos desconexos). Se o negro foi excluído da história, sobrar-nos-ia, portanto sob o risco de ficar excluídos da “história” a tarefa de contar a nossa história, ou seja, CONTAR OUTRAS HISTÓRIAS.

Aqui está uma armadilha gigantesca que devemos estar alertas:

Se por um lado a história oficial UNIVERSAL (ocidental, judaico, cristã e burguesa) nos privou do direito de reconhecimento e quando aparecemos na história somos pintados como bárbaros ou coitadinhos… por outro lado, a recontagem de OUTRAS HISTÓRIAS ESPECÍFICAS tem a tarefa de desconstruir este imaginário, mas acima de tudo, “recuperar” (reconhecer) os nexos de nossas especificidades com a história da humanidade como um todo. Caso contrario, correremos o risco de novamente fortalecer as idéias racistas do século XIX, idéias estas que afirmavam que não éramos humanos, éramos os outros.

A chave para superarmos O PERIGO DE UMA ÚNICA HISTÓRIA está na própria HISTÓRIA REAL (não como memória ou interpretação de fatos seqüenciais). Ao contrario do que afirmam os racistas, e muitas vezes repetimos inocentemente, quanto mais estudamos a história da humanidade mais se percebe a presença e ativa contribuição dos africanos para o desenvolvimento humano universal. A humanidade surge na África e lá podemos observar o surgimento primeiro de diversos saltos evolutivos em nossa trajetória enquanto ser social.

A contribuição do continente africano para o conhecimento sobre astronomia, metalurgia, geometria, mineração, arquitetura, cultura, religião, artes, filosofia é imperceptível apenas aqueles que estão cegos pelas lupas do racismo forjado no sec XIX. O próprio pensador grego Heródoto (considerado erroneamente como um dos pais da história) reconhece a superioridade dos egípcios frente ao a muitos conhecimentos de altíssima importância à sociedade grega, como é o caso da astronomia e astrologia. (ver slide: introdução ao estudo das civilizações africanas)

A presença africana na cultura brasileira chega a tal ponto que o pensador de esquerda Darci Ribeiro chegou a dizer (inspirado em Gilberto Freire) que o Brasil não é mais um mosaico de raças, mas a síntese de uma mistura. O que o nosso pensador ignora é que esta mistura não impediu o massacre físico e cultural do negro e que até hoje existe um “gradiente de cor” que faz com que a pessoa sofra os efeitos do racismo mais intenso quanto for a coloração da sua pele.

Ocorre que até hoje, QUANDO O NEGRO APARECE NA MÍDIA, OU NA ESCOLA É SEMPRE COMO COITADINHO OU BÁRBARO… isto quando aparece, e isto tem causado impactos horríveis em nossa subjetividade (tanto negros como brancos, embora os últimos se beneficiem deste processo). Chimamanda nos alerta para o fato de que a história ocidental (não só a disciplina de história, mas a forma que nos vemos enquanto seres humanos) tem estado permeado de um olhar que nos desconhece a humanidade, influenciando o nosso pensar e agir sejamos negros ou brancos.

Fui escrevendo este texto enquanto assistia ao vídeo (lembra que a minha internet é lenta né? rs) e confesso que quando cheguei ao final do filme estava em choque… pensei várias vezes em não seguir escrevendo porque o vídeo já havia falado tudo que precisava ser dito no momento. O filme é um tapa na cara que nos questiona sabiamente sobre o que temos feito para ser diferentes de todo este processo de “contação de uma única história”.

Ao trabalhar com a formação de professores e educadores sociais para abordagem dos conteúdos presentes na Lei tenho visto muita iniciativa “bem intencionada” fracassar pelo desconhecimento da historia real da África e da humanidade. Tenho visto que muitas vezes os poucos professores sensibilizados para a importância deste debate só conseguem  falar das contribuições do negro no campo lúdico, confirmando a visão de Hegel de que a África é a infância da humanidade, desconsiderando as contribuições dos africanos para o desenvolvimento humano-universal. Tenho visto militantes negros estudados assumindo desesperadamente uma visão distorcida do que é história (a história como factóides, ou interpretação dos fatos, ou apenas Memória) para se contrapor a esta “história” inventada no sec XIX.

Este é o desafio central da Lei 10.639/03(ou 11.645/08): NÃO É A HISTÓRIA DO NEGRO OU DOS AFRICANOS QUE ESTÁ EM QUESTÃO, não se trata de contar mais uma história. Falar da história da África ou do Negro no Brasil EXIGE SIM RECONTAR A HISTÓRIA DO BRASIL E DA PRÓPRIA HUMANIDADE. O desafio para nós é o que Steve Biko chamava no seu texto “a definição da consciência negra”na BUSCA PELA VERDADEIRA HUMANIDADE. Qualquer coisa abaixo disto será um tiro no próprio pé.

Deivison Nkosi – Professor de História da África

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