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As vezes, a crítica à crítica da crítica é apenas, ausência de autocrítica: Sobre a realeza negra, a psicanálise e a crítica ao duplo narcisismo.

Essa porra é um campo minado  / quantas vezes eu pensei em me jogar daqui / mas aí, minha área é tudo que eu tenho  / minha vida é aqui / eu não consigo sair / é muito fácil fugir / mas eu não vou / não vou trair quem eu fui e quem eu sou (Racionais Mcs) 

Tenho assistido, com certa angústia, o debate infinito em torno da “fala”, da “cala” e dos lugares sociais e políticos sob os quais esses atos discursivos se dão. A angústia mencionada se deve menos à emoção que o tema suscita e mais ao modo pelo qual ele vem sendo tratado. Do “lugar” teórico que leio tudo isso – “talvez até confuso mais real e intenso” (Racionais Mcs) – acredito faltar aí um elemento importante: a dialética. Me explico: 

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Frantz Fanon foi um crítico da identidade, quando pensada como entidade a-histórica e fechada às diferenças internas e externas. Em uma perspectiva fanoniana seria um equívoco afirmar que  as formas pelo qual se dão as lutas negras não poderiam ser criticadas ou que, sobretudo, um branco não poderia ser protagonista desta crítica. Toda posição política é passível de críticas e contradições e convenhamos, as formas pelo qual a identidade tem sido debatida (não apenas por pensadoras/es antirracistas,  mas em geral) merece muitas críticas. Esquece-se frequentemente,  no entanto, que apesar de sua crítica radical ao nacionalismo anticolonial e à Nègritude, Fanon apostou todas as fichas nestes movimentos, porque entendia que a negação colonial (alienação estranhada e desumanizadora dos colonizados) era, na verdade, um projeto identitário que coloca falsamente o branco, a Europa ou o Ocidente (burguês) na condição de humano-genérico-universal. 

“Havia dois Reinos de Terror, se quisermos lembrar e levar em conta: um forjado na paixão quente; o outro, no insensível sangue frio… Nossos arrepios são todos em função dos horrores do Terror menor, o Terror momentâneo, por assim dizer, ao passo que podemos nos perguntar o que é o horror da morte rápida por um machado em comparação à morte contínua, que nos acompanha durante toda a vida de fome, frio, ofensas, crueldades e corações partidos? Um cemitério poderia conter os caixões preenchidos pelo breve Terror diante do qual todos fomos tão diligentemente ensinados a tremer e lamentar, mas a França inteira dificilmente poderia conter os caixões preenchidos pelo Terror real e mais antigo, aquele indizivelmente terrível e amargo, que nenhum de nós foi ensinado a reconhecer em sua vastidão e lamentar da forma que merece.” (M. TWAIN, A Connecticut Yankee in King Arthur’s Court, 1889)

Esse identitarismo universalista branco – que não se resume ao campo das representações mas, se materializa na morte física e simbólica dos não brancos – não poderia ser derrotado por simples frases de efeitos (tipo: “somos todos iguais”, “não é possível saber quem é negro no Brasil” ou “eu também tenho um sangue negro”) mas sim por um confronto ético, político e estético que  desestruturasse radicalmente  as relações sociais racializadas. 

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Para Fanon, esse confronto, em primeiro lugar, só poderia ser travado, se aqueles que foram negados e objetificados  (bestializados) rejeitassem o lugar de objeto e assumirem a condição de Sujeito histórico, não apenas da própria auto-definição, mas da definição do mundo como um todo, impondo-se no jogo histórico como parte ativa da humanidade-genérica-universal, disputando os seus termos. Mas essa revolução não é, pelo menos em Fanon, uma simples virada linguística, ao contrário, ela se efetivaria, se fosse violenta o suficiente para “sacudir as raízes do edifício” colonial-capitalista.  

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Esse movimento violento de “transformação do mundo” pode gerar incômodos, generalizações indevidas, mágoas interpessoais, mesmo naquelas pessoas parceiras que se identificam politicamente com os grupos sociais vulnerabilizados…  isso porque a política pressupõe uma certa generalização de acontecimentos cotidianos de forma a explicitar contradições e demandas estruturais. Por isso, o incômodo implícito à qualquer demanda política é incontornável, mas é libertador, não apenas desse “outro” outrora objetificado mas, sobretudo, do frágil  “Eu” que até então falava para sí mesmo e por isso, não havia sido confrontado pelos “objetos” que afetivamente estima ou detesta. Por essa razão, Fanon nos convoca, brancos e negros, a descermos aos nossos “verdadeiros infernos”. 

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Frantz Fanon, que foi bastante influenciado pela psicanálise,  era um crítico radical da violência colonial, materializada pelo identitarismo branco (e pagou o preço de ser rotulado pelos liberais como violento) mas também criticou os limites da violência anticolonial (a “miragem da negritude”, como definia), caso não fosse devidamente canalizada para a estrutura social que a sustenta, ao invés dos indivíduos. Mas não ignorou que, em geral, aqueles que se beneficiam conscientes ou inconscientemente de uma ordem social violenta são os primeiros à rotular como “violenta” as vítimas,  transferindo simbolicamente  para elas contradições e demônios que também são seus, mas não combinariam com a imagem divinizada e pseudo-crítica (ou acima de qualquer crítica) que o racismo lhe conferiu. 

“O que é que vocês esperavam quando tiraram a mordaça que fechava essas bocas negras? Que elas entoassem hinos de louvor? Que a cabeça que os nossos pais curvaram até o chão, quando se erguessem, revelassem adoração nos olhos?” Jean-Paul Sartre

O que Fanon quis dizer com, “a violência desintoxica”  ao lado da afirmação  “o que queremos é libertar tanto o branco de sua brancura como o negro de sua negrura”  é que  a luta contra o identitarismo branco, se for levada até as últimas consequências, será acompanhada de incômodos incontornáveis que, pelo menos, no calor da batalha, terão o efeito colateral de devolver temporariamente para o colonizador, o mal-estar que  a sua simples presença, enquanto colonizador, impôs durante séculos.  Mas o resultado é um reconhecimento recíproco. 

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Isso não significa, pelo menos não para Fanon, que apenas vítima possa falar (local de cala) e nem que a sua fala seja mais legítima que outras ou que esteja acima de qualquer crítica. Apenas, que a verdadeira luta anti-identitária não é aquela que desarma as possibilidades de reação ou ação programática da vítima em busca da emancipação, em nome de um universalismo ou da identificação antiessencialista, mas aquela que permite a circulação recíproca  da fala, e, portanto, do mal-estar que ela pode causar em suas generalizações e silenciamentos. Isso serve para o objetificado, que almeja se constituir como sujeito da auto-inscrição (que não pode esquecer que sua identidade também é produzida na alteridade com o algoz que precisará confrontar) mas também para aquele que sempre foi visto como sujeito, e agora se incomoda ao se perceber objetificado por aquele que acreditava estar salvando. 

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Fanon foi um crítico da identidade (pelo menos, da noção essencialista da identidade),  e, por isso, condena qualquer mistificação de si, mesmo que levada à cabo pelas vítimas históricas em seu intento de emancipação. Ele chamava de “duplo narcisismo” essa mistificação invertida que acredita que a vítima tem sempre razão ou que só a sua fala seja válida. Para ele, esse narcisismo invertido deveria ser superado pela inserção real dos colonizados no processo de transformação radical da sociedade que permitiria reconhecer inclusive que nem todo branco é inimigo, assim como nem todo negro está do lado da luta negra.  

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Neste sentido, é certo dizer que Fanon foi um crítico da identidade, mas mobilizar partes soltas de sua produção para criticar  apenas os colonizados  em busca de justiça e auto-inscrição sem, antes,  desmantelar de cima à baixo o identitarismo branco (ocidental, burguês, etc)  que estrutura a ordem social (mas também as instituições críticas à ordem), é  fazer coro com a sua perpetuação. É esquecer que toda fala traz um cala,  mas o narcisismo, quando confunde identidade com identificação, identifica a “cala” apenas no outro ou pior, identifica abstratamente a própria experiência singular ou coletiva com a universalidade concreta. Diante desta apropriação racializada da universalidade, defende o próprio ponto de vista ou interesses como se fossem universais e acusa de identitário apenas o outro, que questiona essa (falsa) universalidade, sem perceber-se a si próprio como parte de uma identidade hegemônica particular abstratamente universalizada. 

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Não estou dizendo que o colonizado/oprimido/explorado em luta pela auto-inscrição não possa ser questionado em seus limites ou que a suposta realeza de Wakanda, da Bey ou do Im-hotep não possa ser confrontada politicamente… Até Chadwck Boseman o fez ao lembrar que talvez o verdadeiro  vilão  seja o T-challa e não o Killomanger! Mas este confronto não pode ser prerrogativa exclusiva das “vítimas”….  Não se pode ignorar também, que existem muitos brancos que se identificam com as pautas negras, antirracistas ou com pautas históricas relacionadas às diversas expressões de desigualdade social no país. Seria um equívoco catastrófico confundi-los ou igualá-los aos verdadeiros inimigos que se posicionam a partir das velhas ou novas direitas ou aqueles que se vestem de esquerda para manter tudo como sempre foi.

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O problema, penso, quando não se interroga à respeito da própria branquitude (e também a negritude, acrescentaria Fanon), é transferir para “eles” contradições que também são “nossas”, alimentando uma visão mistificada de “nós”, seja lá de que lado da trincheira estejamos. Mas a trincheira não destina o mesmo lugar para todos… por essa razão, a depender de onde venha essa mistificação, ela pode resultar –  mesmo quando originada de parceiros históricos e inquestionáveis –  em uma militância não assumida em defesa de uma ordem violenta onde apenas as  vítimas são acusadas de violentas  e não a própria ordem que se diz questionar. É exatamente esse o fenômeno nomeado pela psicanalista Cida Bento como pacto narcísico da branquitude. 

“Quando a esquerda não rasga horizontes, nem infunde esperanças, a direita ocupa o espaço e draga as perspectivas: é então que a barbárie se transforma em tragédia cotidiana.” (J. Chasin, 1989)

6 respostas em “As vezes, a crítica à crítica da crítica é apenas, ausência de autocrítica: Sobre a realeza negra, a psicanálise e a crítica ao duplo narcisismo.”

[…] Após ser acusado de eurocêntrico por desconsiderar a crítica decolonial de W. Mignolo, Zizek o manda tomar no c*&%#, ou no bom inglês colonial, “Fuck you, Walter Mignolo!”. Na treta (que tbm é uma disputa entre marxismo e pensamento decolonial, no contexto das ciências sociais contemporâneas), ambas as partes mobilizam Fanon para os seus objetivos: mas os “Decoloniais”, lançando mão apenas da crítica de Fanon ao universalismo abstrato para criticar o eurocentrismo iluminista, mas ignorando a defesa de um “universal concreto”, empreendida pelo “novo humanismo” defendido por Fanon…. e o Zizek, mobilizando a defesa fanoniana do “universal concreto” para criticar corretamente o diferencialismo essencialista do pensamento Decolonial, mas tbm ignorando que em Fanon a crítica radical ao identitarismo dos subalternos (duplo narcisismo) não se furta de reconhecer sua importância dialética no confronto ao universalismo abstrato (identitários) do colonizador. […]

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