*Mpambu Njila Njila vua! Kiambote! Mutu e mutu ave hanga ko
Por Deivison Faustino (Nkosi)
O Documentário ‘ReMastered: O Diabo na Encruzilhada‘, a ser lançado pela Netflix em breve, trará à tona a fascinante história do músico do Blues Robert Leroy Johnson (May 8, 1911 – August 16, 1938), que segundo conta a lenda, fez um pacto na encruzilhada para tocar bem e ter sucesso. Depois do suposto pacto e o seu desaparecimento por um ano, o músico regressou aos palcos com habilidades e desenvoltura rítmica jamais vistas. O seu sucesso meteórico foi interrompido aos 27 anos após uma morte “misteriosa”.
O documentário, que se compromete a resgatar a história do músico, acaba por evidenciar um tema nem sempre debatido no Brasil: a influência das crenças sagradas de matriz africana nos EUA.
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Dado à sua influência protestante, o modelo de colonização adotado nos EUA (Segregação), sustentou-se por uma negação QUASE absoluta dos valores culturais (estéticos) trazidos à diáspora pelos africanos escravisados e os seus descendentes. Não apenas os tambores foram proibidos como também as diversas crenças religiosas trazidas de regiões que hoje são conhecidas como Congo, Angola, Senegal, Nigéria, Gâmbia, Camarões, Namíbia, e Costa do Marfim, entre outros. Pode-se imaginar o terror que essas crenças exerciam às mentalidades escravistas estadunidenses quando vemos os seus esforços de demonização do que chamam genericamente de Vodum (ou vodoo): do desenho do Picapau à conhecidos filmes de Hollywoodeanos, essas crenças são geralmente cobertas de estigmas, distorções fantasmagóricas e preconceitos.
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Ainda assim, como mostram os principais estudiosos da cultura… a relação entre povos, mesmo sob dominação colonial, resulta sempre em influências múltiplas quem nem sempre são percebidas ou reconhecidas, mas estão la, tensionando as noções simplistas de existir e resistir. Se é verdade que as culturas de matriz africana foram violentamente perseguidas e demonizadas naquele país, diversos de seus elementos insistiram em se fazer visíveis. Não sem o atravessamento de importantes contradições.
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No caso da música, como lamentava o trompetista Dizzy Gillespie a proibição dos tambores na terra do Tio San resultou em uma menor complexidade rítmica da música afro-americana (quando comparada aos ritmos afro latino-americana), mas também em um hipnotizante trato percussivo com o corpo ou os instrumentos de cordas.
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No caso da religião, mesmo nas regiões católicas como a Luiziana, a proibição das crenças trazidas de África não resultaram na sua extinção – como queriam desesperadamente os racistas, mas na transfiguração delas em outros termos, como a musicalidade e espiritualidade corporal do Gospel ou mesmo na permanência de símbolos africanos adaptados ou em tensão com os binários códigos cristãos.
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É sabido que esse negócio de Diabo é uma invenção judaico cristã que não comporta a complexidade cosmogonica africana. A inexistência de uma visão binária (entre natureza e sociedade, espiritual e humano, liberdade e necessidade, bem e mal, masculino e feminino, etc…) permitiu, em diversas crenças africanas, a compreensão de entidades ou divindades mediadoras das dimensões que compõe a existência. A possibilidade de mediação é tão sofisticada que alguns teóricos chegam a questionar se o termo “religião” realmente se aplicaria às crenças sagradas africanas uma vez que inexiste, na maioria delas, a ideia de expulsão do paraíso ou pecado original que exigisse o re-ligare.
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O ponto que interessa, quando olhamos a história do Gospel, Blues ou Spirituals é a dinâmica nada linear dos encontros (e dês-encontros) culturais. Os colonizadores acreditavam piamente que a sua cultura era superior à dos povos dominados por eles e que estes, no contato com a cultura ocidental, assimilariam os valores espirituais e estéticos considerados superiores e abandonariam as suas crenças originais, entendidas como atrasadas.
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Ao que parece – e isso fica gritante no caso de Robert Leroy Johnson – não se pode manipular mecanicamente os jogos dos significados sem ter que se deparar com efeitos colaterais imprevistos. Como revela um famoso ditado iorubá: “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje…”
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Em primeiro lugar, como alertava o sociólogo Clóvis Moura, o “sincretismo” cultural não é, como se costuma pensar um processo unilateral de imposição de uma cultura dominante sobre um povo dominado, mas também a influência dos elementos culturais negados sobre a cultura dominante. Moura afirmava, olhando para o cenário brasileiro, que assim como houve uma influência cristã sobre as crenças de matriz africana, houveram influências simbólicas de matriz africana sobre as crenças cristãs, especialmente naquilo que se denomina “catolicismo popular”.
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Em segundo lugar, e não menos importante, aquilo que se busca enterrar vivo e para sempre – uma ideia, um jeito de olhar o mundo material ou sagrado, um movimento – depois de agonizar sem ar por debaixo da terra, pode se decompor e se recompor como sementes e, eventualmente emergir sob novas formas de vida, à revelia dos sistemas de crenças vigentes. Não estou me referindo ao “Diabo” (ou o Satan cantado por Johnson). Aliás, o cristianismo jamais o enterraria ou abriria mão dele porque ele é figura central nesse sistema de crenças. Sem medo d’Ele, não haveria razão procurar intermediários humanos que institucionalizam a possibilidade do religare (igreja com instituição). Me refiro à milenares crenças africanas, levadas pelos diversos povos sequestrados para as Américas.
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Qualquer brasileiro – independente de sua concepção religiosa – sabe o valor das encruzilhadas para os diversos sistemas de crenças de matriz africana. Da Umbanda, Quimbanda, Terecô, Batuque aos Candomblés de qualquer nação que se observe, encontra-se na encruzilhada uma dimensão espaço temporal de fundamental importância.
É na encruzilhada (Mpambu= cruzar e Njila= caminho) que uma série de caminhos se cruzam e abrem a possibilidade para novas escolhas e contradições. Seja como fronteira, limite, ponte ou portal, é nela que as contradições se explicitam, e se permitem ser superadas dando vida a novas outras contradições. É também na fronteira entre o masculino e o feminino (e porque não, entre masculino e masculino, feminino e feminino e tantas outras infinitas combinações), mas principalmente no cruzamento dessas fronteiras que os polos inter-sexionam-se sexuadamente. Esse caráter dinâmico da vida (mas também da história) está fartamente representado, nas religiosidades de matriz africana no Brasil, em divindades como Exu (candomblé Ketu), Legba (candomblé jeje) Mpambu Njila (candomblé congo-angola), Pombagiras e Exus (umbanda e quimbanda).
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Esses sistemas de crenças não são pautados, como no cristianismo pela ideia de pecado ou de oposição entre bem e mal, como algo definido a priori por um sagrado absoluto, mas sim pela ideia de liberdade, necessidade e responsabilidade ou, se preferirmos, causa e efeito de nossas próprias ações. Isso significa que o universo sagrado não está radicalmente oposto à existência material (mas a compõe em todos os aspectos) mas, sobretudo, que a nossa ação na terra exerce influência sobre esse universo ao mesmo tempo que este exerce a sua influência sobre nós.
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Assim, as divindades são entendidas – não como bem ou mal, anjos ou demônios, mas – como forças da natureza ou ancestrais desencarnados que podem nos auxiliar (e eventualmente atrapalhar) na tomada de escolhas ou mesmo interceder por nós naquelas instancias da existência que não alcançamos materialmente, mas esse contato com aquilo que “está além” do que vemos pressupõe mediações e atravessamentos que são possíveis na encruzilhada (fronteira ou ponte). Assim, a encruzilhada é uma dimensão espaço temporal sagrada privilegiada para qualquer pedido e os seus guardiões, cultuados com destaque em qualquer culto realizado no âmbito desses sistema de crenças.
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Não é atoa que essas representações (Exu, Mpambo Njila, Pombagira, Legba, etc) foram demonizadas no âmbito do colonialismo escravista. Esse conjunto de crenças representavam riscos reais ao colonialismo porque permitia em uma só tacada que: 1. os africanos (e seus descendentes) preservassem o seu sistema de referencia e memória coletiva (negando, pelo menos simbolicamente, a máxima colonial segundo o qual os africanos eram coisas e não humanos); 2. fosse possível esboçar relações de poder, ideologia e hierarquia que fugissem ao controle da casa grande, representando grande ameaça e; 3. organizar resistência política implícita ou aberta contra o regime escravista.
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O irônico, para retomar ao hipnotizante blues de Robert Leroy Johnson, é que ao associar esse sistema de crenças ao demônio enquanto impunham o cristianismo como única forma de interpretação do mundo, os escravistas cristãos não não contavam com o caráter escorregadio e contraditório dos significados: se o Sinhô afirmava e fazia repetir – sob a força do chicote e da baioneta – que as divindades dinâmicas da existência eram o diabo ou o mal (Evil)… e diziam ainda que o Bem Supremo era Aquele que abençoava a escravidão, a tortura e o estupro… então, que mal havia em cultuar esse nomeado “mal” para garantir um bem imediato que podia variar entre o alívio da dor física ou mental da escravidão, até a tentativa de uma conquista maior como o sucesso no mundo da música, depois de uma abolição que continuou marginalizando e violentando a população negra?
Ainda não assisti o Documentário, mas pode ser que Robert Johnson tenha pregado uma grande peça em nosso imaginário judaico-cristão.
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Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo ávores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como ávores e montes e flores e luar e sol.“Deus”, por Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)
Parafraseando o ateísmo spinosiano de Fernando Pessoa , poderíamos dizer que se “Deus” é a ordem que mata e legitima a escravidão, e o “Diabo” a possiblidade de subverte-la – quem disse isso foram os missionários cristãos nas Américas – então, parceiro… chame-os do que quiser desde que possamos aliviar ou nos livrar, tanto no plano material como sagrado, dos traumas da tortura, estupro e do linchamento…
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O problema, para os africanos e seus descendentes na Diáspora escravagista é que essas encruzilhadas da cultura não tiveram efeitos apenas sobre o dominador, mas também sobre si, e eles próprios (nós), a jogar o jogo de dentro dos significado, também foram (fomos) jogados para além do que suponhamos ir e ao longo dos tempos e espaços, e acabaram(acabamos) interiorizado parcialmente os valores que outrora lhe(nos) contrapunham. Muitos de nós também acreditamos que Exu era o mal, pouco importando aí se o mal era o mau a se combatido ou o bem a ser almejado. Quando os evangélicos neo-petqencostais descobriram isso, exploraram essa informação com eficácia mortal que explica hoje o porquê boa parte da população negra do continente americano fugir como “como o diabo foge da cruz” (?) das representações sagradas referentes às encruzilhadas. Mas isso é outra história que desfocaria o grandioso e enigmático Robert Johnson.